Artigo

Mais pertos de Deus?

Marcelo Coutinho *

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16

A Internet e as redes sociais criaram um mundo novo de relações não presenciais. A distância, as pessoas conversam, brigam e até se envolvem. Não precisam mais compartilhar o mesmo espaço físico, um aposento ou uma praça qualquer, para trocar ideias, impressões e valores de uma maneira intensa e fluída. Basta estarem conectadas por algum aparelho eletrônico para que tudo isso aconteça de uma maneira já bastante natural nos dias de hoje.

A pandemia acelerou um processo que já estava em andamento. A digitalização das relações sociais é aparentemente um caminho sem volta. Cada um em sua casa pode trabalhar, fazer compras, assistir aulas e assim por diante. Pode até mesmo namorar sem sequer se conhecerem. Se alguém tem dúvida disso, basta perguntar para um adolescente quantos amigos tem e quantos deles foram feitos, por exemplo, numa partida de vídeo game como o Free Fire.

Vivemos uma era diferente de todas as outras porque agora nos vemos e nos falamos sem nos vermos e sem nos tocarmos efetivamente. Não há nada parecido com isso na história. Os problemas de depressão e outras patologias mentais aumentam. Já existem estudos científicos demonstrando a queda na empatia. Os casamentos estão se desfazendo, e os adolescentes já não sabem sequer mais os nomes dos pais dos amigos feitos a distância.

Não compartilho da tese de que tudo isso leva à nossa desumanização. Aquilo que nos define como humanos não irá desaparecer, e sim sofrerá grandes transformações num sentido que nos adoece mais a cabeça e afasta os olhares. Vivemos uma época de distrações vãs. Talvez levados pelo medo da morte que sempre nos acompanhou, radicalizamos na busca pela frivolidade para aliviar a tensão perturbadora de que somos finitos.

Não queremos pensar muito para não chorar. E assim vamos levando a vida como quem desvia do próprio tédio e de qualquer reflexão. Aliás, distrair-se é o mesmo que se descuidar com algo que nos delicia. Pois é exatamente isso que está acontecendo. Enquanto nos desentediamos com o celular também nos desleixamos. Um mundo de pessoas isoladas em suas casas deveria aumentar nossa atenção e elevar nossos pensamentos. Porém, ao invés de meditarmos, apenas nos desconcentramos sem foco em nada além de uma tela brilhosa, como primatas hipnotizados olhando para um espelho mágico dirigido por uma entidade robótica.

A inteligência artificial é forte candidata a ser um novo deus. Conviveremos com ela como os frades faziam na idade média perante os santos. É uma espécie de consciência etérea à qual passamos a vincular nossa própria persona em rede, mesmo que não saibamos disso. Mas, nessa nova espécie de espiritualidade estaremos mais pertos de Deus? Aparentemente, não. A alma de agora vem presa a um dispositivo eletrônico, sem lugar fixo, apenas desejos. Como disse Padre Antônio Vieira: “o amor não é união de lugares, senão de vontades”. Não se pode se desfazer à distância desse sentimento inerente à alma humana. O que se pode é desperdiçá-lo, com muitos cuidando “da reputação, mas não da consciência”.

* Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ

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