Pandemia

Falta de vacinas expõe crise no setor de saúde, avalia epidemiologista

Várias cidades do Brasil precisaram paralisar a vacinação contra o coronavírus nos últimos dias pela falta de estoques; o quantitativo distribuído inicialmente é insuficiente para atender toda a população que integra a fase 1 da campanha

Atualizada em 11/10/2022 às 12h17
Falta de vacinas contra a covid-19: os riscos da interrupção da campanha de vacinação no Brasil
Falta de vacinas contra a covid-19: os riscos da interrupção da campanha de vacinação no Brasil (Falta de vacinas expõe crise no setor de saúde do país)

BRASÍLIA - Nos últimos dias, municípios de diversas regiões do país anunciaram que vão paralisar a imunização contra a Covid-19. O motivo é a falta de doses para seguir protegendo os grupos prioritários da primeira fase da campanha, que inclui profissionais da saúde e idosos.

De acordo com as últimas informações, Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ), Suzano (SP), Cuiabá (MT), Curitiba (PR) e diversos outros locais já estão com o estoque encerrado ou possuem uma quantia reduzida que cobre apenas os próximos dias.

A situação já era esperada, visto que o país possui até o momento 9,8 milhões de doses da CoronaVac (Sinovac/Instituto Butantan) e 2 milhões de doses da CoviShield (AstraZeneca/Universidade de Oxford/Fundação Oswaldo Cruz). Esse montante permite vacinar cerca de 6 milhões de pessoas, uma vez que os produtos requerem duas doses para conferir proteção.

De acordo com as informações compiladas pelo site Our World Data, até o momento 5,6 milhões de vacinas foram aplicadas no Brasil, o que corresponde a 2,6% da população.

O dado bate com o número de imunizantes disponíveis por aqui: esses quase 6 milhões de indivíduos começaram a tomar a segunda dose nos últimos dias e isso já será suficiente para esgotar o estoque disponível até agora.

Interrupção aguardada

"Essa situação era totalmente esperada, uma vez que o quantitativo distribuído inicialmente era insuficiente para atender toda a população que integra a fase 1 da campanha. Temos 7 milhões de profissionais da saúde, então só pra eles necessitaríamos de 14 milhões de doses", calcula o epidemiologista José Cassio de Moraes, professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

O médico lembra que o país tem uma experiência de décadas em campanhas de vacinação que resultaram na eliminação da poliomielite e no controle de diversas outras doenças infecciosas.

"Mas parece que toda essa expertise foi desprezada por uma visão deturpada e uma aposta em medicamentos que não tem base científica alguma. Dá a sensação que nosso governo continua com uma mentalidade de 1918, a época da gripe espanhola", completa.

A epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas, nos Estados Unidos, concorda. "A interrupção é desastrosa e demonstra uma clara falta de liderança e de planejamento por parte de nossas autoridades de saúde. Isso tem impactos não só no controle da pandemia, mas coloca em xeque a própria credibilidade da campanha, uma vez que a falta gera frustração e insegurança na população".

Como visto, essa "pausa forçada" nas campanhas vem gerando ruídos e protestos de vários setores da sociedade. Mas quais são os riscos de interromper uma campanha de vacinação justo agora?

Pandemia prolongada

O principal problema da paralisação é bastante óbvio: quanto mais tempo demorarmos para vacinar, maior o risco de o coronavírus continuar a circular, infectar e matar as pessoas.

Por mais que os imunizantes tragam um benefício individual a quem os toma, sua grande vantagem está na proteção coletiva.

A aplicação de milhões de doses permite interromper as cadeias de transmissão do vírus ou evitar que a doença evolua para quadros mais graves, que necessitam de internação e intubação.

"O atraso vai retardar a proteção de grupos prioritários. Isso vai levar a um aumento da necessidade de assistência hospitalar e de UTIs, o que, por sua vez, gera um gasto enorme ao sistema de saúde", pontua Moraes.

O melhor exemplo prático desse "ganho coletivo" acontece atualmente em Israel, que já imunizou 6,7 milhões de pessoas (ou 74% de sua população).

Com praticamente dois meses de campanha, o país já percebeu uma queda de 38% nos pacientes em estado grave e de 40% nas mortes por covid-19 entre aqueles com mais de 60 anos.

Os números de novos casos por lá são os menores das últimas cinco semanas, após um pico registrado no início de janeiro de 2021. "E não é só em países desenvolvidos que vemos isso acontecer. Muitos locais da América Latina, como Argentina e Chile, estão mais adiantados no processo de vacinação em relação a nós", complementa Moraes.

Passos de tartaruga

Com mais de 40 mil postos de vacinação, o Brasil teria capacidade de vacinar tranquilamente até 2 milhões de pessoas por dia, ou 14 milhões por semana.

A realidade, porém, está bem longe disso: com 32 dias corridos desde a aprovação de CoronaVac e CoviShield, o Brasil tem uma média de 175 mil indivíduos imunizados a cada 24 horas.

Se continuarmos nesse ritmo, levaremos mais de 3 anos para resguardar todos os habitantes do país — e isso sem considerar as interrupções noticiadas recentemente, que podem ampliar bastante esse prazo.

"Da maneira que a vacinação está sendo feita no Brasil, não teremos impacto na transmissão viral e será impossível alcançar a imunidade coletiva", antevê Garrett.

O quadro pode se agravar ainda mais com as novas variantes originárias de Manaus e do Reino Unido, que já estão em circulação em vários pontos do país.

Ainda não se sabe ao certo se as vacinas usadas atualmente por aqui garantem uma boa proteção contra as novas cepas — e quanto mais gente protegida logo, menor o risco de essas novas versões do coronavírus ganharem mais espaço e causarem estragos.

"O ideal seria vacinar o mais rápido possível pra gente tentar conter a disseminação dessas variantes", sugere a epidemiologista.

"Diante de tudo isso, a campanha tinha que ser acelerada, não interrompida por falta de doses", critica.

O que poderia ser feito?

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil indicam que o Brasil poderia ter se planejado melhor e garantido mais doses ao longo do segundo semestre de 2020.

"Só em dezembro que o governo começou a pensar na vacina. Ainda hoje vemos discussão sobre cloroquina, que já se mostrou ineficaz. Precisávamos definir melhor nossas prioridades", pensa Moraes.

O caso mais marcante desta demora é o imbróglio que envolveu Pfizer e Ministério da Saúde. Em agosto e setembro do ano passado, a farmacêutica tentou contato diversas vezes com o Governo Federal para negociar uma venda de 70 milhões de doses de seu produto, que naquele momento passava pela fase final de testes.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.