Artigo

A dor que engrandece

Atualizada em 11/10/2022 às 12h17

Se em tempos ditos normais, a música sempre teve o poder de nos transportar para outros ares e despertar sentimentos variados, o que dizer destes pandêmicos tempos? Em razão disso, digna de aplausos é a iniciativa da Academia Nacional de Medicina que lançou o Programa de Verão com o título Humanismo & Saúde, em homenagem ao acadêmico Ricardo Lopes da Cruz, que nos deixou no último dezembro, ele que foi, em vida, um dos servos devotados da Medicina e da Arte.

Esse programa conta com o entusiasmo e o apoio de nosso presidente Rubens Belfort e com a coordenação do acadêmico Marcello Barcinski. Sua primeira edição abordou o impacto das doenças na obra de grandes compositores. As palestras daquela ocasião foram “O efeito da surdez na mudança estética da música de Beethoven”, proferida por Rafael Fonseca (Guia dos Clássicos YouTube - RJ) e “O impacto da neurossífilis na vida e na obra de Donizetti e Smetana", proferida por Matheus Kahakura (Instituto de Neurologia de Curitiba).

Dois ícones da música de altíssima qualidade, os compositores enfrentaram os reveses ocasionados pelos males físicos com galhardia e altivez. Beethoven, por exemplo, poderia ter afundado na suposta derrota de uma surdez progressiva, que o atormentou até o fim de seus dias, mas seus estudiosos se encantam com o fato de que a doença o libertou das amarras físicas do som e o catapultou a um nível de excelência que poucos conquistaram.

Não nos é desconhecido constatar que a criatividade, a imaginação e a inventividade florescem, muitas vezes, em solos áridos. Grandes descobertas são frutos de situações desesperadoras, quando a mente se mostra mais arguta e mais focada. A doença - essa hóspede indesejada - muitas vezes se revela como um lembrete máximo da finitude e nos coloca em rota com a realização de metas nunca imaginadas.

Um adendo se faz necessário: a música é, em si mesma, propulsora de crescimento mental e espiritual, pois se trata de uma das primeiras expressões da vitalidade da mente humana. Em suas diversas manifestações, envolve sentimentos, ideias, imagens mentais, representações e símbolos que explicam um mundo transcendente que nos habita. A música povoa nossa percepção estético do mundo, registra nossa história e recria realidades.

Já tive oportunidade de comentar em outras ocasiões que, na mitologia grega, não à toa, Apolo é o mesmo deus que protege a medicina e também a música. Há de se ter uma razão para essa coincidência. O corpo humano é como uma grande orquestra à espera de alguém que, com paciência e conhecimento, saiba regê-lo. O escritor Rubem Alves, ele mesmo hipertenso, conta que, ao descobrir a doença, teve que conviver com esta de modo pacífico e harmonioso. E que, em algumas vezes, dela se esqueceu e até da própria finitude, quando absorto com as produções literárias que lhe marcaram a carreira.

O apóstolo Paulo, em sua epístola aos Coríntios, afirmou que, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior se renova dia a dia. Alguns episódios inesperados podem nos arrancar da existência medida, das prescrições regidas pela hora, pelos diagnósticos que não aceitam refutações e, também, podem nos transformar a ponto de nos deixarem marcas indeléveis. Isso, se formos capazes de ressignificar a dor e a impotência, tornando-as gatilhos não de paralisia e depressão, mas de expressão da sensibilidade, na direção da grandeza. Em Elegias do Duino, o poeta Rilke nos socorre: “Seria sem sentido a lenda que, outrora, no lamento por Linos, surgiu a primeira e ousada música, penetrando árida rigidez; [...] - o vazio, pela vez primeira, entrou naquela vibração que agora nos arrebata, consola e ampara’? A música é bálsamo.

Natalino Salgado Filho

Médico nefrologista, reitor da UFMA, titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina

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