Artigo

Cleonice e seus muitos filhos

Atualizada em 11/10/2022 às 12h17

No raiar do dia 02/01/2021 morreu Cleonice Silva Freire ou, simplesmente, para seus amigos (e eu me considerava como tal), Cleo.

Querendo prestar uma homenagem para Cleo, fui buscar em Theodore Dalrymple, escritor e psiquiatra inglês, uma inspiração. Dalrymple, como mais ninguém, escreve sobre a natureza humana e faz severas críticas à intelligentsia contemporânea.

Peguei um livro ao léu, dentre os muitos que tenho do mesmo autor, e, folheando sem maiores pretensões, encontro um trecho em que Dalrymple, em uma ode ao dr. Samuel Johnson, poeta e ensaísta inglês do século XVIII, adjetiva-o como um homem “bom mas falho”. E prossegue dizendo que dr. Johnson era orgulhoso e humilde; fraco e forte; afável e rabugento; com alta estima por si mesmo e modesto; teimoso e se deixa consumir pela dúvida; espiritual e carnal; esperançoso e desesperado; cético e incrédulo; melancólico e alegre e por aí vai.

Quando li isso, fui arrebatada e encontrei aquela que queria homenagear: desembargadora Cleonice Silva Freire e sua parte humana, extremamente humana, como todos nós, mas, ao mesmo tempo, com um diferencial que eu conhecia e queria relembrar, deixando consignado nessas mal traçadas linhas.

A Cleonice, ou Cleo, que eu conheci e admirava, era forte e frágil; segura de si e modesta; afável e extremamente exigente; teimosa e insegura quando o tema versava sobre questões complexas; altamente espiritualizada, mas vivendo as dores do cargo no dia a dia; sempre otimista, mas desesperada para que os resultados do trabalho aparecessem; cética e, ao mesmo tempo, esperando pelo melhor; triste pelas inúmeras vicissitudes da vida pública e alegre com as coisas boas da vida, que incluíam a música e as filhas.

Mas, a Cleonice que mais me marcou é aquela juíza da infância, que lutou para que o então presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Jorge Rachid, instalasse a “Casa Menino Jesus de Praga”, para abrigar crianças em situação de risco, que, nos idos de 1997, dormiam no chão em abrigos improvisados pelo poder público.

E mais ainda, a Cleonice que me levou às lágrimas foi a que lutava como uma leoa para conseguir um lar adotivo para cada um dos meninos e meninas nos muitos abrigos. E essa luta se dava contra o sistema e o tempo.

Lembro-me de uma criança, portadora de Aids, que adquirira da mãe toxicômana, que foi adotada por um casal francês, se não me falha a memória. Lembro-me de quatro irmãos que ela não queria separar e foram todos adotados por um casal estrangeiro também. Lembro de muitos casos e situações em que ela não desistia enquanto não colocasse cada criança em segurança, em um lar.

E mais, sua atuação não se limitava a conseguir a adoção. As crianças que eram adotadas ficavam sob sua vigilância por um tempo além do que estabelecia a lei. Até porque, e aí vem o fantástico de toda a coisa, isso não era formal: Cleo se tornava membro de cada família, participando do cotidiano e das festas, aqui ou em Paris e Roma. Tanto é assim que, com certeza, muitos choram hoje com a sua morte, no Brasil e no mundo, porque ela se tornou membro da família.

Enfim, como juíza da infância, para mim a melhor até agora, ela foi juíza e mãe e, por isso, não deixou só as três filhas de sangue. Cleonice deixou muitos filhos e estes estão espalhados por todo o mundo.

Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro

Juíza de Direito

E-mail: sonia.amaral@globo.com

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