Resenha

Lembranças do azul ibérico na poesia de Daniel Blume

No livro de poesia "Delações", autor fala sobre coisas e costumes portugueses

Fernando Braga / Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h18
Capa do livro "Delações", de Daniel Blume
Capa do livro "Delações", de Daniel Blume (capa delações)

Brasília - Do Bairro Alto Fernando Pessoa tantas vezes saia do “Cortiço da Ritinha”, em rumo de “A Brasileira”, ali pertinho, no Chiado, separado apenas pela estátua de Camões, o maior dos lusíadas, para com os amigos Mário de Sá-Carneiro e José Almada Negreiros, vivificarem a alma com aquele café da manhã, acompanhado da prosa do velho Adriano, proprietário da cafeteria.

Fora ali também, no Bairro Alto, na clássica “Severa”, requintada e querida “Casa de fado”, onde nascera “murmúrios cantados/ dentre estreita mesas/ à luz de guitarra portuguesas [...] Cantigas das promessas/ de um amor perdido/ entre as ruas de Lisboa...” Solfas divagadas pelo poeta Daniel Blume neste seu livro “Delações”, cujo enfeixe, dizem os editores da “Helvetia”, serem “versos calibrados, curtos e contundentes, que não apenas delata, mas surpreende, a cada página, quando nos faz naturalmente refletir, sorrir, viajar e trançar com a poesia”.

Se não soubesse tratar-se de um livro de poemas do mais fino apuro semântico e da mais bem trabalhada ourivesaria poética, que me chegou oferecido com uma letra de bem-criado calígrafo, pensaria de logo tratar-se de algum volume contendo aquele mecanismo judicial, pelo qual um acusado colabora com as investigações, revelando detalhes de crimes ou minúcias que ajudam a recuperar o que a justiça procura. Felizmente as ‘Delações’ aqui contidas não são do advogado, mas do poeta, e são outras, bem outras, a conter alimentos do espirito dimanados dos parreirais dos anjos.

A folhear “Delações”, encontrei expandidos por muitas páginas, poemas sobre coisas e costumes portugueses, o que me levou ater-me a este ângulo poético de Blume, já que lá ele concluiu, na Universidade Autônoma de Lisboa, estudos acadêmicos relativos à sua formação, o que justifica a naturalidade de seu apego e de seu direcionamento àquela vivência, o que tocou, profundamente, o meu lado ibérico provindo da velha Talábriga lusitana, sob o timbre de minha dupla nacionalidade que se aviva todas as vezes que atravesso as pesadas e distantes águas que nos separam, mesmo sob as bênçãos de outra ode marítima, ressonantes das cantigas de Portugal e das toadas do Maranhão...

Antes comentei dois dos livros do poeta Daniel Blume: “Penal” e “Resposta ao terno”. Sobre o primeiro, disse que “de cujo labor jurídico remanejou para seu intimismo poético, as nuances práticas e imagísticas, a nos revelar, como se num tríptico, a misteriosa ciência plena e pânica do Conde de Beccaria”. E sobre o segundo, dizia que “os poemas deste livro são curtos, como se fossem haicais, mas extensos pelo foco semântico que irradiam, a guardarem em seus núcleos uma força explosiva muito forte...”

Poderia reacender tais anotações agora, já que a forma poética do haicai, cuja estrutura poemática é feita por versos de cinco e sete sílabas em estrofes diminutas, curtas e breves, continuam aqui nestas “Delações”, com aquela mesma força que impulsionava o paranaense Paulo Leminski, um mestre entre nós nessa arte, a dizer ainda que “as ideias que exaltam uma tendência atual ou uma atitude emocional chegassem mais longe...e outras seriam destorcidas a fim de se adaptarem ao que já é aceito,” a repetir “Notas para uma definição de Cultura”, como escrevera T.S. Eliot, o genial autor de “Terra Desolada”, imbicado no chão londrino para testemunhar nestas anotações as chalaças ibéricas do poeta Daniel Blume...

Vejamos o poeta neste haicai “Portuguesa”, a cantar o famosíssimo pastelzinho mundialmente conhecido: “Ao nosso fado, /pedra salgada/depois do pastel/com a nata de Belém, / antes do Porto de seus lábios.”
Ou ainda numa fugida a “Évora”, a culta e medieval capital do Alentejo: “Fria noite entre muros, / onde a capela de ossos grita/ a efeméride da carne quente.”

Ou quem sabe, mais adiante, em “Belmonte”, uma pitoresca vila portuguesa do distrito de Castelo Branco, na província da Beira Baixa: “Um templo lento/divaga na aldeia/do vale sem pressa/das trutas d’águas nevadas/dos abrigos rochosos, / com o vinho branco dos chãos de Cabral”.
E “Sob a ponte”, o poeta canta: “O Tejo risca negro à esquerda/ na maré incandescente/ dos sons da ribeira.” Se ao invés do Tejo fosse o Douro, diria que Daniel teria se amesendado à Ribeira do Porto, a “comer uma francesa” [sanduíche com queijo e ovo] e a degustar um fino ‘Dão’, colhido dos vinhedos estendidos em arroios pertinho desse cenário...

De aqui, ele vai ao “Algarve”, no extremo sul de Portugal, entre Lagos e Faro, aonde se estende uma pintura de praias, cheias de casas caiadas em despenhadeiros baixos, a revelar todo o azul da Península Ibérica. Ouçamo-lo: “Quando extensos dias/comprimem exíguas noites, / a Lua espelha águas mediterrâneas/na Rua da Bateria, / quando o Sol grita/pelo mar das falésias/da praia de São Rafael, / é verão em Portugal”
E volta, e vê-se “insone” em Lisboa, em cuja “Revelação”, pleno no Terreiro dos Paços, nos diz: “No Sol das vinte horas, /as marolas do Tejo/ tem o dom de ler almas/ na Praça do Comércio, / através do arco da Rua Augusta.”

E no veio de tudo oculta-se um poema, de onde dele se retira o pão e o vinho para a sagrada comunhão da vida; e quase sempre, o subjetivismo da dor que nos faz sofrer, o mais que suficiente para que o poeta trabalhe a palavra e esprema o verbo. E é neste “Oculto” que Blume nos diz:” Há um poema que nunca se deu. / Um poema intocado quase impossível. / Há um poema que jamais escrevi. / Um poema sem página como pintura sem tela. /Talvez haja um rosto/na nuvem do poema oculto.”

E em “Distância”, o poeta nos brinda com mais este haicai: “Com taças de ilusão/ brindemos a um amor mirífico.”
Eis aí o poeta Daniel Blume a aportar os umbrais do nosso Panteão com mais estas “Delações”, seu quarto livro de poemas, a nos trazer uma poesia de corte moderno e participativa, a nos cantar tudo que sabe, sem, no entanto, nos mostrar quem é, como na magia deste poema, no qual, como um prestidigitador, retira uma ‘Carta na manga’ para nos dizer por fim: “Sabem tudo o que revelei/ não tudo o que sou.”
Um poeta, com certeza, digo eu sem titubear!


*Fernando Braga, advogado em Brasília (DF)

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