Artigo

Cachorros humanos

Lino Raposo Moreira

Atualizada em 11/10/2022 às 12h18

Um cachorro do interior do Maranhão, Bingo, foi arbitrariamente preso. A irritação com um vizinho que vivia buzinando na porta de sua casa dia e noite causou-lhe um incontrolável acesso de raiva. Bingo deu uma leve dentada nele. De nada adiantaram os pedidos às autoridades. A justiça não tardou nem falhou, pois ele recebeu voz de prisão logo após o ato impensado e foi recolhido ao centro de controle de zoonoses do município.

Aquela inofensiva mistura de poodle com pequinês, não pôde deixar de viver um sério conflito, nascido da diferença entre a natureza puramente canina de seus companheiros de infortúnio e a sua própria, humana. A propósito, foi o ex-ministro do Trabalho, Rogério Magri, quem descobriu essa humanidade dos cachorros, após uma longa convivência com Orca, sua cadela de estimação.

Fizeram com Bingo uma grande cachorrada. Ele permaneceu confinado sem formação de culpa até que, atendendo aos apelos de sua dona, o Tribunal de Justiça do Maranhão mandou o juiz libertá-lo, fazendo prevalecer a justiça humana para um humano injustiçado, embora no pelo de cachorro.

Esse negócio de animal às voltas com demandas judiciais não é novo aqui. Vejam o processo das formigas, do início do século XVIII. Os capuchinhos acusaram formalmente, perante o juízo eclesiástico, os pobres insetos de furtarem alimento da despensa do convento de Santo Antônio e de contribuírem para a destruição do prédio, ao afastarem “a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava ruínas”, nas palavras do padre Manuel Bernardes na Nova floresta.

As formigas passaram a viver uma vida de cão. Nem por isso deixaram de ser tratadas como gente. João Lisboa afirma ter visto os autos do processo nos arquivos do convento. Ele transcreve uma certidão do escrivão José Guntardo de Beckmanns (escrito assim mesmo). Em um trecho dela pode-se ler isto: “[...] na sua cerca citei as formigas em sua própria pessoa [...] lendo-lhes tudo de verbo ad verbum [...]”. Disseram as “rés Formigas” através de seu curador ad litem, que provariam que as testemunhas dos frades não eram confiáveis.

O caso de Bingo teve um final feliz. Não se sabe, contudo, o desfecho do das formigas, apesar do padre Bernardes ter feito referência em 1706 a uma decisão final. O juiz teria determinando aos frades a marcação “dentro de sua cerca [de] sítio competente para a vivenda das formigas, e que elas sob pena de excomunhão mudassem logo de habitação”. Impossível, no entanto, seria a imposição de tal sentença naquele ano, porque o processo se arrastou até pelo menos 1713.

Tempos depois, o Supremo Tribunal Fedral - STF pretendeu manter a tradição de dar humana atenção aos humanos animais, porquanto pronunciou-se sobre a morte de uma cadela, Pretinha. Ela foi recolhida pela carrocinha da prefeitura de Belo-Horizonte e sacrificada antes do prazo legal. A sua dona deu início a várias ações nos tribunais. Recurso vai, recurso vem, o caso acabou no Supremo.

Como Pretinha não era uma besta de carga, ninguém poderá dizer ser esta história uma besteira ou pensar que besta é quem acredita na justiça. A apreciação pelo Supremo é uma inequívoca fonte de esperança para o formigueiro humano de milhares de brasileiros à espera de alguma decisão sobre as ações de seu interesse. Eles haverão de achar que se os cachorros são atendidos com tão boa vontade, então não haverá razão dos homens, de quem aqueles são os melhores amigos, não receberem o mesmo tratamento do nosso sistema de justiça.

Lino Raposo Moreira

PhD, economista, membro da Academia Maranhense de Letras

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