São Luís

Uma estória em busca da história

Joaquim Haickel

Atualizada em 11/10/2022 às 12h18
Painel Fundação de São Luís, de Floriano Teixeira
Painel Fundação de São Luís, de Floriano Teixeira (painel fundação)

Recentemente mantive um delicioso e acalorado debate com dois queridos amigos e confrades da Academia Maranhense de Letras, os magistrados, Lourival Serejo, Presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão e Ney Bello Filho, Desembargador Federal da Primeira Região, sediada em Brasília.
Ambos abominam a palavra estória, por não existir na língua portuguesa, por ser um inglezismo. Já eu não tenho esse pudor, em que pese ser membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e ser um amante devotado da história e os fatos a ela relativos.

Ocorre que em minha opinião, uma das formas mais eficientes, eficazes e efetivas da história se difundir ao ponto de causar um interesse profundo, comovedor e motivador, para que haja uma pesquisa minuciosa, fazendo com que se possa conhecê-la sem as deformações causadas por seus narradores e pelo tempo, é a difusão das estórias que acompanham a história.

É sobre uma dessas que falarei hoje, em homenagem aos 408 anos de fundação da minha amada e idolatrada, salve, salve... São Luís, que já foi Saint Louis e antes era Upaon-Açu.
Antes de Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardière, no início do século XVII, deixar Cancale para vir fundar a França Equinocial no Maranhão e Grão Pará, terras portuguesas, então sob o domínio da Espanha, graças a União Ibérica, já andavam por aqui, desde os primeiros anos do século XVI, piratas franceses. Alguns deles, tinham relacionamento com La Touche e seus sócios de empreitada, em terras que se eram de propriedade dos Felipes de Espanha, pertenciam e eram ocupadas pelos tupinambás, chefiados entre outros, por Japiaçu.

Para os índios, os franceses já não eram estranhos e as novas terras, já não eram tão novas assim, pois anos antes Jacques Riffault e Charlex de Vaux haviam comandado uma expedição que se fixou por aqui. Até o próprio La Touche já havia passado por essas terras antes de 1612.

Dizem que era comum naqueles tempos em que novas terras estavam sendo descobertas e que o mundo alargava suas fronteiras, alguns navegadores menos preocupados com ditames éticos e morais, comumente chamados de corsários ou piratas, dependendo para quem trabalhavam, se era para seus soberanos ou para seus próprios deleites, raptavam meninos que perambulavam pelos portos da Europa e os deixavam nas terras por onde aportassem, para que aprendessem as línguas dos nativos e servissem de intérpretes entre eles e os donos daquelas terras.

Aquilo não era uma coisa correta, mas em muitos casos, ou pelo menos, no caso que lhes vou contar, foi melhor que o destino que se descortinava para o nosso personagem, o qual pretendo criar uma força tarefa para investigar sua história, mas por enquanto fiquemos com sua estória.
Numa de suas primeiras viagens ao que hoje é o norte do Brasil, Jacques Riffault e Charles Des Vaux, mandaram raptar alguns meninos que perambulavam pelo porto de La Rochelle. Seus homens trouxeram dois jovens de aproximadamente oito anos. Daví e Jean. Os dois serviriam de intérpretes, “línguas” como os nativos os chamavam.

A estória fica mais fascinante a proporção que incluímos nela ingredientes da história, e vice-versa.
La Touche teria convencido o rei Henrique IV sobre a importância de tomar posse das regiões não ocupadas pelos portugueses e espanhóis. Ele conhecia bem a região pois em 1604 havia explorado as costas da Guiana com o navegador Jean Mocquet. Porém Henrique faleceu, deixando como sucessor seu filho Luís XIII, ainda criança. A viúva de Henrique, a grande Maria de Médici, assumiu a regência, e católica, impediu a expedição pelas diferenças religiosas com La Touche.

Depois de algumas barganhas na corte, tendo angariado fundos com o almirante François de Rassilly, Senhor Almers, um importante líder católico, e o senhor de Sancy, Nicolau de Herley, La Touche partiu de Cancale, em março de 1612, com uma caravela e duas naus: "Saint-Anne", "Régente" e "Charlote", tripuladas por 500 homens, entre eles frades capuchinhos, tendo viajado por cinco meses completos, enfrentando os dissabores do mau tempo.

Após passarem por Fernando de Noronha, desembarcaram, em julho de 1612, na Ilha de Upaon-Mirim, atual ilha de Santana, transferindo-se depois para Upaon-Açu.

Para facilitar a defesa, os colonos construíram um forte, que em homenagem ao rei Luís XIII, denominaram de Saint Louis, onde hoje se encontra o Palácio dos Leões. No dia 8 de setembro, os frades capuchinhos rezaram a primeira missa na cidade.

Segundo relato de Claude d'Abbeville, havia cerca de 12 mil índios na ilha, distribuídos em 27 aldeias, compostas cada uma de 4 cabanas ordenadas.
Claude d'Abbeville e Yves d'Évreux produziram importantes relatos sobre a presença francesa no Maranhão: "História dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas", escrita por Abbeville e "Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614", escrita por Evreux.

A chegada dos padres franceses foi em Jeviree, hoje ponta de São Francisco, aldeia que servia de porto aos tupinambás. Depois seguiram até o Forte e posteriormente ao Convento São Francisco, ponto de partida para as visitas pelas aldeias da ilha. A primeira aldeia visitada, foi Turoup, onde hoje é o bairro do Turu e a última foi Taperusú, na ilha de Tauá-Mirim.

No percurso, os franceses visitaram a aldeia de Juniparã, foram à Itapari, passando por Uatimbou, atual Timbuba. Na outra margem de Itapari, situava-se Euaive, atual Iguaíba. Porém, os franceses primeiro foram para Timboí, região da atual praia de Panaquatira, depois fizeram caminho inverso até Juniparã. Desta aldeia, partiram para Eussauap, atual Vinhais Velho, passando por Maioba e Coieup onde hoje fica o bairro Pão de Açúcar. Eles também visitaram outras aldeias da ilha, até retornar ao Forte.

Abbeville explica em sua obra, que muitas dessas aldeias mudavam de local ou se uniam a outras, gerando dificuldade em se saber a sua localização exata. Algumas delas são: Maracana-pisip, atual Maracanã, Araçui Jeuve, atual Araçagi, Pindotube, hoje Pindoba e Meurutieuve, atual Miritiua. Algumas dessas aldeias originaram bairros e povoados ou comunidades rurais da ilha, marcando a formação cultural de nossa cidade.

Os franceses estabeleceram relações com os chefes dessas aldeias em busca de alianças contra os portugueses. Alguns desses chefes, conhecidos como morubixabas eram: Japiaçu, chefe de Juniparanã, a maior aldeia da ilha e principal aliado dos franceses; Cachorro Grande, chefe de Eucatu, atual povoado de Rio dos Cachorros; Marcoia Peró, onde hoje fica o povoado Maracujá; Su-assuac, da aldeia Coieup; Jacuparim, chefe da aldeia Maioba.

Os morubixabas eram escolhidos com base em qualidades pessoais, como a idade, experiência na guerra, oratória, número de familiares, dentre outras.

A sociedade tupinambá, por vezes, era marcada pela disputa entre aldeias, captura de inimigos, rituais de antropofagia e poligamia. As leis francesas tentaram coibir os rituais antropofágicos.

Migan assistiu e testemunhou isso tudo, e eu, se não como historiador amador, mas como escritor profissional, tentarei encontrar esses seus relatos, que devem ter sido escritos pelo padre Arsénio, que continuou por aqui depois da partida dos franceses em 1615.

A saga é contada em detalhes no livro de Maurice Pianzola, Os Papagaios Amarelos, que foi adaptado ao cinema, em 2002 e assim produzido filme e documentário, sob a direção da suíça Emmanuelle de Riedmatten. É importante que se diga que os índios tupinambás chamavam os franceses de papagaios amarelos, por serem loiros e ruivos e tagarelas, diferentemente dos portugueses.

Bem, mas isso pouco importa em nosso caso. O meu interesse é contar a bela história de um daqueles meninos que, raptado num porto francês, foi deixado em uma ilha remota e tornou-se um dos líderes dos indígenas daquelas terras.

O nome dele era Daví Migan. O nome de sua mãe era Olívia, uma jovem que ganhava a vida limpando uma espelunca no porto de La Rochelle. Nunca soube quem foi seu pai.
Riffault e Des Vaux jamais receberam os créditos merecidos na empreitada da criação da França Equinocial, e Migan é apenas um personagem obscuro, que alguns estudiosos dizem que não se pode ter certeza de sua existência.

Tendo Riffault voltado para França, Des Vaux permaneceu em Upaon-Açu. Ele adotou Daví e Jean como seus filhos e viveram naquele paraíso entre 1594 e 1608, quando Des Vaux também voltou para França, levando consigo Jean e deixando Migan aos cuidados de Japiaçu. Des Vaux só retornaria com La Touche!...

O certo é que Migan chegou criança em Upon-açu, se tornou filho adotivo de um pirata e mais tarde casaria com a filha do morubixaba da maior das aldeias tupinambás que haviam por aqui, naquele tempo.
Eu só consigo imaginar a vida de Migan, comparando-a com a de Adão! Um homem vivendo com uma ou quem sabe duas ou três Evas em um maravilhoso paraíso!...

Bem, a história deve ser pesquisada e comprovada, mas a estória conta que Migan teria morrido na fatídica investida dos franceses contra os portugueses e brasileiros, no forte da Santa Maria, na Batalha de Guaxenduba, nas praias de onde hoje é o município de Icatu.
Ele teria deixado vasta descendência entre os tupinambás.

Pretendo escrever um roteiro sobre Daví Migan, e através da estória dele contar a história da criação de minha cidade, que tanto amo.

*Cineasta e membro da Academia
Maranhense de Letras

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