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Testamentos que contam a história

Transcrição de testamentos do acervo histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão resgatam histórias nunca antes contadas sobre pessoas notáveis que viveram na São Luís do Século XVIII

Atualizada em 11/10/2022 às 12h19
(testamento)

SÃO LUÍS- 17 de fevereiro de 1800. Em São Luís, Aleixo Dias da Serra expressa as últimas vontades em testamento – prática rotineira das famílias nobres ainda no Século XVIII. Declara ser casado na igreja, dono de dois escravos e de duas casas. Como homem de posses, Aleixo não quer ser enterrado no cemitério (até então reservado a pobres e escravos), mas na igreja, privilégio apenas concedido aos nobres. Para salvar a sua alma, determina quantas missas devam ser rezadas.

À primeira vista, o testamento não difere dos demais daquele momento histórico, contudo um detalhe invulgar o torna especial: Aleixo era um ex-escravo. Como Aleixo Dias da Serra conseguiu ascender socialmente, por enquanto ainda é mistério.

O testamento de Aleixo Dias, nascido em São Luís, e à frente de sua época (a Abolição da Escravatura só aconteceria em 1888), é uma das relíquias do “Registros de Testamentos” (1751 a 1865), que integra o acervo de obras raras da Biblioteca do TJMA.

Em 2012, a Biblioteca deu início ao Projeto de Transcrição e Organização do Acervo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, para fazer a transcrição, organização e elaboração de instrumentos de pesquisas visando subsidiar o alcance dos usuários às obras. A princípio, foram eleitos os Livros de Testamentos de 1751 a 1756, cuja transcrição encontra-se finalizada.

São 72 códices manuscritos – contendo em média 600 páginas – únicos e originais que, por meio do “Projeto de Transcrição e Organização do Acervo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão”, deram origem a três livros de registros de testamentos do Maranhão (1781-1791, 1790-1795 e 1793-1801).

O projeto teve início com a leitura paleográfica e transcrição dos códices manuscritos de testamentos. Após a correção desse material foram elaborados inventários de pesquisa. A organização e disponibilidade desse vasto e inédito manancial de pesquisas históricas vai facilitar sobremaneira o trabalho de busca de pesquisadores e usuários da biblioteca.

“Com a transcrição e divulgação desses testamentos, o Tribunal de Justiça presta um serviço à sociedade maranhense, à medida que permite o acesso de documentos raríssimos a pesquisadores e interessados”, destaca o presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão, desembargador Lourival Serejo.

Os testamentos representam valiosa fonte para a reconstituição da memória de uma cidade, e, até mesmo, para a construção da história do próprio país. “Retratar o contexto histórico da época, pela análise do comportamento de grupos sociais em seus aspectos culturais, ideológicos e políticos é de suma importância. Ao entendermos o passado, também compreendemos o que vivenciamos no presente”, avalia a coordenadora da Biblioteca do TJMA, Cintia Andrade.

A historiadora Arlindyane Santos, responsável pela transcrição dos manuscritos, afirma que nesses documentos é possível analisar os comportamentos políticos, sociais, econômicos, familiares; as mentalidades, as religiosidades, o poder, as fortunas, e outros aspectos da vida em sociedade.

Segundo a historiadora, os testamentos são testemunhos de uma época fundamental para o Maranhão, quando ocorreram mudanças significativas nos cenários econômico e político. “Os testamentos, apesar de serem relatos individuais, expressam modos de viver coletivos e certificam sobre as condutas, se não de toda a sociedade, mas de grupos sociais mais específicos”, acrescenta.

Contexto histórico
Na segunda metade do século XVIII, com o começo da Revolução Industrial inglesa, as exportações de algodão alcançaram forte crescimento, o que contribui para a prosperidade econômica e o aumento da população.

Em 1755 é fundada a Companhia Geral do Comércio do Grão Pará, e o porto de São Luís ganha extraordinária agitação com a chegada e saída de produtos.

É nesse contexto de crescimento econômico que os testamentos analisados foram redigidos. O objetivo mais evidente das peças era destinar os bens adquiridos aos herdeiros em ascensão.

Estrutura dos testamentos
A intenção do testador (o dono do testamento) era garantir o cumprimento das últimas vontades, não só no campo dos bens materiais. A ele também interessava, na maioria dos casos, pugnar pela salvação da alma.

A redação do testamento é, no século XVIII, considerada prática de devoção e de preparação para uma boa morte.

O testador pretende resolver assuntos terrenos, destinar os bens dignamente e segurar a salvação pela celebração de missas e pelas rezas dos vivos pela sua alma, garantidas, é certo, pela doação de esmolas à Igreja Católica.

O testamento em geral principia com a invocação “Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho, Spirito Santo” seguida do nome e da filiação do testador. Continua com a encomendação da alma a Deus, à Maria e aos santos de devoção, e com a declaração de que se encontra em seu perfeito e são juízo.

São determinados detalhes quanto ao enterro, ao número de acompanhantes e à natureza da cerimônia religiosa. O testamento termina com a fórmula de aprovação redigida pelo tabelião.

Sepultamento nas igrejas

Naquele tempo era costume enterrar os mortos da nobreza nas igrejas. “A maioria das pessoas ricas pedia para ser enterrada na igreja; quanto mais próximo do púlpito, maior a chance de ir para o céu”, exemplifica Arlindyane.

Contudo, com o tempo a prática foi banida devido à proliferação de doenças e falta de higiene característica desse tipo de sepultamento. “O costume de sepultamento nas igrejas fazia parte dos mecanismos de uma ‘boa morte’ e as primeiras proibições contra os enterramentos nos templos datam da década de 20 do Século XIX”, explica o historiador Carlos Henrique da Silveira.

Gomes de Sousa
Entre as raridades de “Registros de Testamentos” encontra-se o testamento de Fellipe Marques da Silva (1748-1801), capitão, fidalgo cavaleiro da Casa Real.

Batizado com o nome de seu avô materno, Fellipe é filho de Antonio Gomes de Sousa, de quem procede a importante família “Gomes de Sousa”, estabelecida no Maranhão do Século XVII.

Proprietário da Fazenda São Filipe, na Ribeira do Itapecuru, deixou testamento com data de 28 de janeiro de 1801. No documento, ele deixa uma fortuna de 12 contos e 554 mil réis, destinada a filhos e familiares, a escravos (para alforria) e esmolas aos pobres. Fellipe foi casado com a prima Ignácia Maria Freire Belfort, cujo testamento é resgatado na obra transcrita.

Fellipe era tio de Ignácio José Gomes de Sousa, construtor do Solar Gomes de Souza, na rua do Sol, em São Luís, atual Museu Histórico e Artístico do Maranhão.

Livros raros
Outras obras de fundamental valor histórico compõem o acervo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do Maranhão, a exemplo de O Código Phillipino (1603), Novellas de Justiniano e Coleção de Leis do Império do Brasil (a partir de 1750), Registro de Títulos de Desembargadores (1813) e Le Livre du Digeste.

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