Realidade ainda difícil

Sete em cada 10 doações de órgãos têm recusa da família no Maranhão

Apesar da elevação, na última década, na quantidade de possíveis doadores de órgãos, razões pessoais ligadas a questões religiosas, desinformação e mitos impedem a realização dos transplantes, por falta de autorização dos parentes

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h18
É importante que o pretenso doador deixe claro para a família seu desejo, explica Polianna Bortolon
É importante que o pretenso doador deixe claro para a família seu desejo, explica Polianna Bortolon (doação de órgãos)

São Luís - Uma das razões para a retração no índice de transplantes com êxito no território nacional diz respeito à chamada ‘negativa familiar’ ou ausência de autorização dos parentes para o procedimento. Devido a mudanças na legislação – por meio da Lei nº 10.211 que modificou o conjunto de regras anterior de 1997 - ainda que o paciente, em vida, concorde com o procedimento, os familiares considerados mais próximos são consultados. A decisão, por força de lei, é determinada pelos parentes de primeiro e segundo grau, cônjuge ou união estável comprovada.

Dados do Ministério da Saúde (MS) apontam que o índice de negativa familiar ou recusa atual no estado é de aproximadamente 70%. Com as campanhas de conscientização e instituição do chamado “Setembro Verde”, que faz referência ao procedimento cirúrgico realizado pelos gêmeos Cosme e Damião, e a simbologia da cor que representa a “esperança” para quem aguarda por uma doação, este percentual vem apresentando queda no Maranhão, nos últimos anos.

Ainda segundo o MS, o índice de negativa chegou a ser de, aproximadamente, 83% em 2013. Somente no ano passado, a pasta federal registrou 110 casos, no Maranhão, em que as famílias, apesar do consentimento dos pacientes - que se prontificaram em ser solidários -, negaram a concessão do órgão requerido.

Para que o órgão tenha a sua doação autorizada, é necessária a determinação do diagnóstico de morte encefálica e investigação de todo histórico clínico e social do possível doador. Após a validação deste, por uma equipe especializada, é fundamental o consentimento da família e, por fim, caso não haja negativa familiar, a cirurgia de remoção dos órgãos e tecidos pode acontecer.

As equipes de remoção devem ser habilitadas à realização do procedimento, autorizado mediante apresentação com base nas determinações do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e Central Estadual de Transplante (CET). Em geral, os casos de rejeição de órgãos por parte dos receptores no Maranhão são considerados baixos.

Elevação ainda é “tímida”
Nos últimos anos, o Maranhão apresentou crescimento ainda tímido no número de transplantes. O estado, considerado com potencial para o procedimento, mas que ainda registra apenas um local para a conduta, contabilizou 227 transplantes no ano passado.

De acordo com o Ministério da Saúde (MS), o número de transplantes realizados no estado, de 2009 até o ano passado, aumentou 26%. Dentre os autorizados, estão os transplantes de rins, fígado, córneas e de tecido ósseo.

No caso dos rins, por exemplo, em 2015 (ano que registrou a maior cota de transplantes do órgão no estado nos últimos anos), foram 61 procedimentos do gênero. A facilidade em encontrar um doador para o rim e, principalmente, a demanda, são apontados para o alto índice. Estes e outros dados, além de serem divulgados pelo MS, são lançados de forma trimestral pela Revista Brasileira de Transplantes (RBT).

Em contrapartida, mesmo com as recusas das famílias, aumentou a oferta de solidariedade. Dados do MS apontam que, em 10 anos (ou seja, de 2009 a 2019), o estado dobrou a quantidade de potenciais doadores de órgãos. Segundo a pasta federal, no território local, o saldo de “solidários” que estavam dispostos a conceder uma parte de seus corpos para outro passou de 54 (em 2009) para 108 (em 2019).

Apesar do índice considerado positivo por especialistas e defensores de campanhas voltadas à doação de órgãos, ainda segundo o MS, o percentual de doadores efetivos (ou quem reúne as condições ideais para o ato) é de menos de 10% do total de potenciais doadores.

O índice caiu em relação ao registrado em 2009, quando o percentual de doadores efetivos em relação ao de possíveis doadores era, na ocasião, de quase 17%. Em um ano (entre 2018 e 2019), o estado registrou queda de 26% no número de transplantes. Há dois anos, segundo o MS, foram 307 procedimentos. E no ano passado, o Maranhão registrou 227 transplantes.

A referência dos dados maranhenses é do início dos anos 2000, quando foi registrado o primeiro transplante renal e de córneas no estado. No mesmo ano, foi registrada a fundação da Central Estadual de Transplantes.

Histórico de transplantes
Em 2001, de acordo com o Ministério da Saúde (MS), houve a contabilização de sete procedimentos de rim e de outros seis de córnea. Os transplantes de rim dobraram no ano seguinte (13 no total). Em 2015, ano com maior registro de transplantes do órgão no período no estado, o banco de dados federal registrou 61 cirurgias.

Em relação à córnea, de 2001 a 2006, a quantidade de procedimentos do órgão no território maranhense aumentou nove vezes, passando para 58. Além das campanhas de conscientização, um dos fatores apontados para a ascensão nas últimas duas décadas acerca dos índices de doação de órgãos no estado é o fato de que, de acordo com a legislação vigente no país, atualmente não há necessidade e tampouco obrigação legal de se apresentar documento atestando que se é doador de órgão.

De acordo com dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), apenas os familiares de primeiro e segundo graus, cônjuges e parceiros de união estável podem autorizar a doação.

“É fundamental que se converse, em vida, com seus entes queridos, para que no momento devido, façam valer sua vontade. É importante que, quem quiser doar um órgão, deixe claro para a família sobre a sua vontade. Até para ajudar outras pessoas”, afirmou Polianna Bortolon, integrante da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (CIHDOTT).

Atualmente, ainda segundo dados da ABTO, o Hospital Universitário (situado na Rua Barão de Itapary, no Centro) é o único credenciado para a captação e transplante de órgãos. No caso de transplante de córneas, além do HU, existem outras clínicas credenciadas a realizar o procedimento.

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Procedimentos que ainda se desenvolvem ou não são registrados
Enquanto rins e córnea são procedimentos comuns no Maranhão, outros como fígado e coração ainda “engatinham”. No Brasil, somente no ano passado, foram realizadas 2.267 cirurgias de fígado. O estado de São Paulo, com 706 procedimentos do gênero, lidera as estatísticas. No Maranhão, segundo o MS, foram apenas duas cirurgias para transplante de fígado, cujo procedimento – com base nos dados da pasta federal – passou a ser contabilizado a partir de 2018.

Quanto à cirurgia de coração, segundo o MS, foram 383 intervenções no território nacional somente no ano passado. O Maranhão, até o momento, não registra procedimentos do gênero e busca viabilização nacional para realizá-lo. Trata-se ainda de um “sonho ainda distante”, em especial, pela ausência de unidades habilitadas e profissionais especializados.

Espera pelo transplante aumentou devido ao coronavírus
Por causa das restrições e orientações sanitárias em virtude do coronavírus, os procedimentos de transplantes de órgãos na capital permaneceram suspensos no Maranhão. Segundo a CIHDOTT, aos poucos, as cirurgias serão retomadas. O Banco de Olhos instalado no Hospital Materno Infantil, por exemplo, já retomou às atividades.

De acordo com os responsáveis técnicos da CIHDOTT, o ordenamento da fila de espera por órgãos no estado não será alterada em virtude da paralisação dos procedimentos. Segundo a coordenação do serviço, a medida é para obedecer quem está no aguardo há vários anos.

Quem doa e quem trabalha pela doação
Trabalhando com o assunto há 10 anos e especialista em Doação e Transplantes, a enfermeira Luiza Maria de Nóvoa doou rim para uma amiga especial. Atualmente, ela é uma das responsáveis pelo controle da doação de órgãos no Estado.

“Sempre fui doadora e desde a minha formação acadêmica defendi a importância da doação. Entrei para o serviço e me apaixonei. Infelizmente, ainda falta mais solidariedade das pessoas, mas nos últimos anos conseguimos salvar a vida de minha gente, graças ao amor de muita gente”, disse a enfermeira.

A doação foi, para Luiza, ao mesmo tempo uma oportunidade de valorizar uma grande amizade, auxiliando uma pessoa próxima e o começo em um campo acadêmico único. “Não podia recuar, tinha que ser a responsável pela cura de minha amiga. A cirurgia foi em 2014, fiz todos os procedimentos, doei o meu rim e em seguida comecei a trabalhar mais a fundo no tema”, afirmou.

SAIBA MAIS

De acordo com o Ministério da Saúde (MS), o transplante de órgãos consiste em um procedimento cirúrgico que se baseia na reposição de um órgão (coração, fígado, pâncreas, pulmão ou rim) ou tecido (medula óssea, ossos ou córneas) de uma pessoa doente (receptor) por outro órgão ou tecido normal de um doador, vivo ou morto.

Importância do SUS para os transplantes

Atualmente, ainda segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil é referência mundial no segmento de transplantes. O país é o que registra o maior sistema público do serviço no mundo. Segundo dados do MS, cerca de 96% dos procedimentos do país são financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em dados absolutos, o Brasil é o segundo que promove mais transplantes de órgãos, perdendo apenas para os Estados Unidos.

No caso dos procedimentos autorizados via SUS, os pacientes são assistidos recebendo, de forma gratuita, o acesso aos exames e outros procedimentos preparatórios. Além disso, a cirurgia e o acompanhamento pós-transplante – incluindo a oferta de medicamentos – também são executados via rede pública.

Para a doação, é necessário que haja o diagnóstico no (a) paciente de morte encefálica. De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), responsável pela regulamentação desta tipologia de óbito, não há a exigência do parecer do médico especialista em neurologia para a confirmação de morte encefálica. O assunto ainda é debatido entre as autoridades de saúde.

O MS preconiza que a constatação, neste caso, de morte encefálica deve ser feita por médicos com “capacitação” e observando ao protocolo estabelecido.

TIRA-DÚVIDAS

Como posso ser doador?

Neste caso, é necessário que o (a) paciente apenas informe a família acerca da vontade. No Brasil, de acordo com a atual legislação, não há necessidade de registrar qualquer documento por escrito de forma obrigatória. Basta a família saber.

O que pode ser doado em vida?

Em vida, pode-se doar sangue, parte do fígado, parte do pulmão, rim e medula óssea.

O que é morte encefálica?

É definida atualmente pela ampla maioria dos profissionais de saúde como o quadro caracterizado pela ausência de vida no encéfalo (cérebro). No país, são necessários dois exames clínicos e um gráfico para que seja confirmada a morte encafálica.

O que pode ser doado nos casos de morte encefálica?

O doador em morte encefálica pode doar córneas, rins, pulmões, coração, válvulas cardíacas, fígado, pâncreas, pele, cartilagens e ossos.

Quem pode doar córneas?

Neste caso, podem doar pessoas em morte encefálica e que tenham sofrido parada cardíaca. De acordo com entidades médicas, a doação pode ocorrer até seis horas após a parada do coração.

Como fica o corpo após a doação?

A retirada de órgãos e tecidos obedece a normas de cirurgia. Não há, neste caso, deformidades. O corpo pode ser velado normalmente.

Contatos do Banco de Olhos do Hospital Universitário
(98) 21091010
(98) 988828802 - WhatsApp

NÚMEROS
Quantidades de Transplantes de rim no Maranhão por ano

2001 - 7
2002 - 13
2003 - 28
2004 - 49
2005 - 36
2006 - 30
2007 - 35
2008 - 47
2009 - 38
2010 - 44
2011 - 45
2012 - 28
2013 - 30
2014 - 34
2015 - 61
2016 - 33
2017 - 47
2018 - 31
2019 – 25

Total de transplantes no Maranhão em 2019 – 227
Total de transplantes no Maranhão de córnea em 2019 – 200
Total de transplantes no Maranhão de fígado em 2019 – 2
Total de transplantes no Maranhão de fígado em 2018 – 3

13 foi a quantidade de transplantes no Estado em 2001
307 foi a quantidade de transplantes no Maranhão em 2018, ano que registrou o maior número de procedimentos do gênero em quase 20 anos

Fonte: Ministério da Saúde (MS)

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