Artigo

No tempo da delicadeza

Ceres Costa Fernandes, Mestra em Literatura e membro da Academia Maranhense de Letras

Atualizada em 11/10/2022 às 12h19

Morrer, verbo definitivo. Não há esta categoria de verbo. Eu a invoco agora. Não há nada tão definitivo quanto a morte. Não há morte passageira: Vou ali morrer um pouquinho e daqui a três meses volto ou Decidi morrer por dois anos, tempo certo para dar uma folga a minha imagem, escapar de umas dívidas, esfriar um bate boca familiar... Seria bom. Mas não, sabemos que o interrompido não se reatará jamais.

Nós, os humanos, centenas de milhares de anos morrendo, ainda não nos acostumamos com a inexorabilidade da morte e, a cada uma, sofremos o mesmo impacto que deve ter causado a primeira morte depois da expulsão do homem do Jardim do Éden.

E foi grande a pancada. Duas de uma só vez. O falecimento dos confrades Waldemiro Viana e Milson Coutinho, com poucas horas de diferença. Morreram na fase desta infeliz pandemia que nos separa dos amigos, nos impede de prestar a eles todas as homenagens de que são merecedores e nos afasta de abraçar e chorar junto com os familiares que também nos são queridos. Além da data da partida, outras coincidências, ambos foram homens de temperamento afável, pessoas empáticas, adeptos da boa convivência.

Em tempos antigos, amigos encontravam-se para confraternizar, comer um mocotó, uma moqueca de peixe ou mesmo um churrasquinho, tocar e cantar serestas e sambas-canção, sempre uma cerveja gelada. E aconteciam longas reuniões lítero-musicais em casa de Waldemiro ou de José Chagas. Os participantes, além dos donos das casas, eram Jomar Moraes e os irmãos Coutinho, Milson, Elsior e Mário, aí um trio de seresteiros com violões e vozes privilegiadas, acompanhados por Chagas, o Figura, ao saxofone. Waldemiro e Milson amavam cantar. Tive o privilégio e a honra de conviver com essas pessoas, ícones da literatura maranhense e participar desses saraus.

A tradição de bem receber e a afabilidade de Waldemiro e seus irmãos foram herdadas diretamente da mãe, a bela dona Lourdes, poeta, mãezona de todos nós. Nos primórdios, os saraus eram no sobrado da Rua do Egito, na sala de jantar aberta para a Baía de São Marcos.

Vocacionado à prosa, Waldemiro colaborou em jornais com crônicas e artigos e atingiu seu ponto alto no gênero romance, que se inicia com a obra Graúna em roça de arroz, em 1978, obra com excelente acolhida da crítica, merecendo de Câmara Cascudo a seguinte apreciação: “Dos romances lidos na última década, nenhum é superior ao Graúna em roça de arroz.” Daí, seguem-se muitos outros romances e sucessos, com destaque para O mau samaritano, O pulha fictício e A tara e a toga. Em todos, manifesta-se a linguagem despida de artificialidades, coloquial, saborosa, prenhe de cor local que nos envolve de tal modo que, de repente, somos nós mesmos os personagens.

Milson fez brilhante carreira jurídica culminando com a magistratura e a presidência de Tribunal de Justiça por duas vezes. Mas a nós, da literatura, importa mais dizer que ele foi um grande pesquisador da História Maranhense, mormente da história da justiça que trouxe a lume em diversas obras, tais como Ouvidores-gerais e juízes de fora, livro negro da Justiça Colonial do Maranhão, Memória dos 180 anos do Tribunal de Justiça do Maranhão. Em Fidalgos e Barões, segundo Jomar Moraes, (Milson) “escreve uma história do Maranhão em diversos planos ou âmbitos: no econômico, no social, no político, no administrativo...”. Sua obra será sempre uma inesgotável fonte de pesquisa para os que desejarem conhecer o Maranhão nos seus diversos aspectos.

Teremos assim, sempre, uma parte da presença dos queridos amigos ao ler, consultar ou nos deliciar com as suas obras, se é isto que significa, nas academias, o epíteto imortal. Imortal, mas não “imorrível”. Sempre nos faltará o sorriso aberto, o abraço sincero, a convivência amena de amigos para além dos interesses e conveniências.

E-mail: cerescfernandes@gmail.com

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