Artigo

Não estou falando de desigualdade

Marcelo Coutinho, Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Atualizada em 11/10/2022 às 12h19

O Brasil está se tornando rapidamente um país de desempregados, subempregados e desalentados, segundo dados do próprio IBGE. Em função de muita riqueza acumulada por décadas passadas, ainda sobra uma classe média inercial, e uma elite cada vez mais rica. Não estou falando de desigualdade, mas de um novo tipo de sociedade que está surgindo.

O Brasil é um país que nunca resolveu bem o seu passado colonial e escravocrata. Aliás, fomos os últimos a aceitar a modernização no século XIX, recusando até o limite a colocar um fim no tráfico oriundo da África. O Reino Unido teve que nos obrigar a isso. E assim se deu nossa entrada na modernidade.

Construímos, então, uma sociedade moderna muito desigual, talvez a mais desigual do mundo. Ao longo do século XX, alguns direitos sociais foram obtidos, muitos deles dados por um ditador. Não chegamos a constituir um estado de bem estar social, característico do período de ouro na Europa pós-guerra. Muita pobreza e desassistência sempre houve por aqui. Mas nos industrializamos e havia emprego.

Com a última redemocratização, a Constituição parecia uma peça da república francesa. Só parecia. A realidade é que, de lá para cá, os direitos trabalhistas foram sendo substituídos por bolsas ou auxílios, e agora uma possível renda básica bem miserável. Quem vive da mão para a boca com trezentos reais ou mesmo o dobro disso?

A desigualdade apenas arranhou um pouquinho, quase nada, entre os governos sociais-democratas. Eles até que tinham boas intenções e diminuíram bastante a miséria no país. Mas a austeridade fiscal os impediu de dar algo mais do que políticas focalizadas, com o aplauso dos organismos internacionais. Nem os dois grandes momentos de crescimento na nossa história, 1973-1979 e 2004-2008, resolveram os problemas de uma economia mediana.

Por isso, não estou falando de desigualdade mais. Isso sempre tivemos e está aumentando agora. A tão celebrada renda básica é a prova maior das transformações pouco esperançosas já precipitadas no país. Os empregos se foram e não voltam mais. Está em curso no mundo todo uma disrupção tecnológica trazida pela digitalização e a inteligência artificial.

O que assistimos no Brasil é provavelmente a primeira experiência de uma nova sociedade em formação. Uma sociedade mais grisalha, onde os velhos vivem mais e os jovens podem menos. Onde quem tem mais de sessenta anos ainda sustenta toda a família, e quem tem menos de 30 não consegue montar a sua própria casa.

Nessa nova sociedade, haverá mais ou menos 76% que não farão de ofício mais nada, muitos dos quais pobres mesmo, ou pendurados em algum patrimônio já adquirido pela família, e que vai pouco a pouco se deteriorar ou perder valor. 23% jogarão o novo jogo, mantendo alguma classe média. Aquele pequeno percentual restante, você já sabe... Segue o caminho do dólar.

É um desafio pensar essa nova sociedade do século XXI sem o mundo da produção e do trabalho como o conhecemos. Mais difícil ainda é viver nela até nos acostumarmos. Parece uma distopia, e é mesmo até para os padrões brasileiros. Porém, temos ainda uma chance, talvez a última. Temos que ter coragem de assumir nosso potencial ambiental numa economia de baixo carbono, oferecendo ao mundo mais do que algumas commodities.

Não será fácil. É um salto que assusta. Embora, contudo, exija impetuosidade, cada dia que passa temos agora menos a perder a não ser justamente esse potencial que a natureza nos oferece, mas que exige um uso tecnológico adequado às necessidades trazidas pela mudança climática. Na destruição em andamento, que só enfatiza o que há de pior na nossa velha sociedade, podemos ousar e, quem sabe, construir um futuro melhor. Ou será preciso, pela segunda vez, que forças de fora nos empurrem para uma nova modernidade?


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