Artigo

Tempos pandêmicos para secretas lições

Natalino Salgado Filho, Reitor da UFMA, titular da Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da AMM

Atualizada em 11/10/2022 às 12h19

Margareth Dalcolmo, médica e pesquisadora da FioCruz, surpreendeu a todos nós, participantes do Simpósio sobre Pandemia e Literatura, ao revelar que a leitura de A Montanha Mágica foi sua inspiração para a escolha da especialidade à qual tem se dedicado há 40 anos: a Pneumologia.

Sendo um romance dos mais influentes do século XX, começou a ser escrito por Thomas Mann, antes da Primeira Grande Guerra, e foi interrompido pela tuberculose que sua esposa teve, tendo sido internada em um sanatório na Suíça. Estes dois eventos terão profundas consequências no enredo da obra, retomada em 1919. O romance contribuiu para Thomas Mann receber o Prêmio Nobel, em 1929. O sanatório representou a Europa da época com seus personagens e com as diversas encarnações culturais e ideológicas daquele momento.

Acerca da tuberculose, Dalcolmo discorreu sobre a variação de nomes com os quais a doença já foi denominada ao longo da história e fez menção à imensa lista de vítimas da tísica. No Brasil, dentro desse rol, está José de Anchieta, missionário na evangelização dos indígenas. Estão, também, além de uma infinidade de pessoas desconhecidas, intelectuais, poetas e escritores tais como Manoel Bandeira, Mário de Andrade, Ferreira Gullar, Martins Pena, Afonso Arinos, Álvares de Azevedo, Cruz e Souza, Euclides da Cunha, Casimiro de Abreu, Noel Rosa e Nelson Rodrigues. Mas é em Roland Barthes que a conferencista destaca pontos de intercessão com o personagem central de Mann, Castorp, em A Montanha Mágica.

Por um lado, para tratar uma tuberculose, Castorp, um jovem estudante de engenharia naval, atravessa sete anos no sanatório Berghof, em Davos, fato que irá mudar completamente sua vida. Esta radical mudança força-o a rever suas prioridades, a partir de outros temas que as regem, diante do tempo contado, porém indefinido. Curado, Castorp entra nas fileiras de soldados da guerra e se torna apenas um homem perdido entre milhares que guerreiam entre si. A individualidade é, aparentemente, perdida entre tantos outros que são meras armas. No dizer de Dalcolmo, é Hans Castorp “um personagem antiherói, anti-épico, pouco pathos, pouco ethos”.

Por outro lado, Dalcolmo aplica à experiência do personagem o vivido por Barthes: “deitado todo dia, dias e dias, conforme prescrito na norma sanatorial” e inscrito entre a “melancolia da amargura e o frenesi intelectual”, é exposto, nas palavras de Dalcolmo, a "experiências superponíveis da comunidade que a tuberculose cria: doença sem dor, incoerente, característica, sem odores e que não tem outros vestígios a não ser o tempo interminável e o tabu social do contágio."

Ao se propor a analisar o tempo na narrativa do escritor alemão Thomas Mann, Dalcolmo foi surpreendente e positiva na temática que ela escolheu para abordar a obra A Montanha Mágica, relacionando Pandemia e Literatura. Com um texto intitulado “Da peste branca e do tempo”, lembrou que as pestes acompanham o homem há milênios, citando o aviso divino no livro bíblico de Deuteronômio e referindo-se ao fato de ser a Covid-19 a primeira praga a receber o epíteto de digital.

Sim, Dalcomo captura de A Montanha Mágica o tempo explicado por Mann: “não aquele que marcam os relógios de estação, cujo ponteiro grande dá saltos bruscos”, mas “o tempo, à sua maneira silenciosa, imperceptível, secreta e, contudo, ativa, (...) continuando a trazer consigo transformações.”

O tempo das pestes coloca a vida diante da doença e da morte. Não tem início nem fim. É de pausa e isolamento, propício a rever o sentido das coisas e a decidir pelas reais necessidades. É este também o tempo que vivemos na pandemia do Coronavírus: um período apropriado para a reflexão sobre nossas capacidades e sobre quem somos. A ameaça à nossa vida pode funcionar como um gatilho que desperta em nós a busca por um significado maior da nossa existência. Que os sobreviventes continuem abrindo espaço para “a passagem secreta do tempo” que nos ensina a procurar a cura para outros males.

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