Para marcar o tempo

Referência cotidiana, os relógios históricos de São Luís persistem

Acessórios, enquanto em funcionamento, eram referência para o controle do tempo no dia a dia da cidade; além disso, eram e ainda são, peças de complemento arquitetônico da cidade

Thiago Bastos / O Estado

- Atualizada em 11/10/2022 às 12h19
Arimatheia Furtado trabalha na restauração do relógio do Largo do Carmo, que apontará as horas novamente
Arimatheia Furtado trabalha na restauração do relógio do Largo do Carmo, que apontará as horas novamente (restaurador Arimatheia Fortado )

SÃO LUÍS - Houve um tempo em que São Luís não dependia de aparelhos celulares ou relógios de pulso para saber o horário oficial e, desta forma, assimilar a noção de tempo em uma cidade que andava em um ritmo bem diferente do atual. Desde meados do século XVIII, a capital maranhense registra a instalação de relógios, considerados históricos, não somente pelo aspecto temporal e de modificação da configuração urbana, como pelo caráter visual e agregador dos elementos arquitetônicos, especialmente de construções religiosas.

Um dos mais conhecidos e lembrados pela memória popular é o relógio do Largo do Carmo. Acessório famoso, até mesmo por quem reside em outras cidades brasileiras, o relógio é cercado de históricas curiosas. Alvo de críticas de autores de artigos e escritores, ao mesmo tempo o relógio faz parte de um dos cartões postais mais conhecidos do território ludovicense e que, atualmente, passa por reforma.

O objetivo de O Estado aqui, é contar um pouco da história conhecida de vários dos relógios conhecidos da cidade. Desde o da Catedral Metropolitana de São Luís (Igreja da Sé), passando por outros templos religiosos (Igreja de São João, Igreja de São Pantaleão, e até mesmo igrejas matrizes do interior do Maranhão) têm como marca a instalação de relógios.

A meta desta reportagem não é apontar somente como se dá o funcionamento deles, e sim saber o contexto social da época em que os relógios foram instalados em seus respectivos pontos. Em alguns casos, existem projetos de revitalização desses acessórios, para exploração turística. Porém, estas metas ainda estão em fase prematura de execução.

O relógio do Largo do Carmo
No início da década de 1940, por intervenção de Paulo Ramos, São Luís apresentava à população da época várias obras que, de acordo com o poder público, seriam fundamentais para a mudança visual urbanístico. Modificações, como por exemplo, na dinâmica da Pedro II eram consideradas fundamentais para a transformação que se avizinhava na cidade.

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Os relógios montados com influência católica

Com participação do poder público e colaboração da Igreja Católica, a capital maranhense recebeu – de acordo com pesquisa de O Estado, em meados de 1941 – o seu relógio público considerado até hoje o mais famoso de todos. O relógio do Largo do Carmo, mesmo ainda ausente do Centro, ainda está vivo na lembrança de quem tem mais de cinco décadas de vida passados em sua maioria pelas ruas, praças e alamedas da Ilha.

De acordo com a empresa que projeta a reforma do Largo do Carmo e, em consequência, do relógio do espaço público, tratava-se tecnicamente de um relógio com quatro faces em acrílico branco, com números algébricos em preto e ponteiros, contendo ainda vidro de proteção, e cuja parte interna era iluminada por lâmpadas florescentes de 20 watts.

Há quem diga que, nos primeiros anos de funcionamento, o relógio era movido a corda. Havia pessoas responsáveis, de forma espontânea, por mover e dar a corda no acessório, para que não houvesse “maiores” atrasos na apresentação da hora e dos minutos.

O acessório faz parte da memória dos que viveram a época áurea de uma cidade com outra organização. Texto escrito por Joaquim Itapary, intitulado “Hoje é dia de...”, publicado em 2012, expressava a sua saudade e incomodo com a “ausência” de paradeiro, segundo ele, do velho relógio do Carmo. O item costumava não ser muito confiável tecnicamente.

O mimo que dava problemas
Reportagem do Jornal O Combate, de 10 de abril de 1954, falava sobre o acessório famoso. De acordo com o periódico, em reportagem intitulada “O Relógio da Praça”, havia muito tempo que a cidade – sob a intervenção de Paulo Ramos – recebeu um presente a ser instalado no Largo do Carmo. Ou seja, o relógio fixado há alguns metros da Igreja do Carmo, no Centro. Segundo o texto, “a guerra contra o Eixo” [em alusão à Segunda Guerra Mundial] estava no auge quando a “velha praça” foi agraciada com uma espécie de mimo, conforme qualifica o jornal.

Segundo a matéria, o relógio era descrito com um estilo japonês, um mármore italiano e marca alemã. Ainda de acordo com o texto, em determinado dia, o relógio “se cansou” e não quis mais trabalhar.

Sete meses mais tarde, no mesmo ano de 1954, o jornal O Combate em suas notas da cidade trazia nova crítica à administração local diante da “inércia” para a recuperação do relógio. Segundo o jornal, “Deus queira que o velho relógio do Largo do Carmo volte a mexer seus ponteiros, oferecendo à população a hora certa”.

Referência a grandes escritores
Além de Itapary, de forma mais recente, escritores renomados fizeram referências ao relógio do Carmo. O escritor maranhense Josué Montello, por exemplo, escreveu um artigo publicado no Diário de S. Luiz no dia 23 de setembro de 1946. Nele, Montello descrevia um Largo do Carmo com outra configuração.

No bojo do texto, o escritor cita o relógio. O jogo de palavras usado por Montello dá o tom da genialidade. Segundo ele, trata-se de um relógio “contraditório”, pois segundo ele “um mostrador marca uma nota, enquanto o mostrador do lado o contradiz, marcando uma hora diferente”.

De acordo com Montello, em suas lembranças, estava guardada a relação do relógio com um Largo do Carmo diferente. Segundo ele, “no meu tempo [...] havia árvores ramalhudas e altas. Havia bancos de cimento, de recosto e braços cômodos. Havia mesmo um quiosque e um tanque com um repuxo de água bastante decorativo”, escreveu.

A mudança: a restauração pelas mãos do artista de três décadas
Em seu ateliê, no bairro São Francisco, o restaurador Arimatheia Furtado cuida dos detalhes finais da recuperação do relógio histórico situado no Largo do Carmo. Algumas peças, conforme explica a O Estado, são originais, como alguns dos eixos para a colocação dos ponteiros nas faces.

Outras, como a central de regulação interna, foram trocados ao longo dos anos, mas registraram sinais de oxidação, causados por fenômenos naturais. “Encontramos um relógio com, considerando o tempo de fixação, boa conservação. Algumas peças puderam ser aproveitadas”, disse.

A recuperação do relógio do Largo do Carmo é um dos itens previstos no projeto original de reforma do Largo do Carmo. Os trabalhos, tocados pela Prefeitura de São Luís, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) serão responsáveis pelo resgate de uma verdadeira raridade cultural na cidade.

Segundo Arimatheia Furtado, algumas peças estão sendo trazidas de outros estados. Uma das empresas fabricantes deste modelo de relógios ainda está no mercado e, em contato com a Prefeitura, auxilia diretamente nos trabalhos. O restaurador citou ainda que a restauração dura algumas semanas. “O relógio infelizmente foi alvo de vândalos também, levaram um eixo dos ponteiros e um holofote”, confirmou.

O trabalho manual de recuperação é feito individualmente e com o capricho de um profissional que exercita o ofício há três décadas. “Sem dúvida, é uma das peças mais complexas e fascinantes por sua história que coloco para trabalhar. O Município está de parabéns por essa iniciativa, de recuperar esta verdadeira riqueza da nossa cidade”, finalizou.

SAIBA MAIS

Trecho do artigo do escritor maranhense Josué Montello publicado no Diário de S. Luiz, do dia 23 de setembro de 1946, falando sobre o relógio da Igreja do Carmo

“No meu tempo, esta alfaiataria trabalhava com muito mais conforto. Havia árvores ramalhudas e altas. Havia bancos de cimento, de recosto e braços cômodos. Havia mesmo um quiosque e um tanque com um repuxo de água bastante decorativo.

Agora a malícia de um administrador cortou as árvores e plantou na praça em relógio [...] O diabo é que se trata de um relógio muitas vezes contraditório; um mostrador marca uma nota, enquanto o mostrador do lado o contradiz, marcando uma hora diferente”.

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