Artigo

Querida: da delicadeza ao insulto e retorno

Fernanda Zacharewicz, Psicanalista e editora da Aller Editora

Atualizada em 11/10/2022 às 12h19

Há algumas semanas, liguei para uma empresa contratada reclamando que me enviaram o arquivo solicitado na última hora útil do último dia do prazo e, quando abri, surpresa: estava vazio. Eu precisava do arquivo, tinha um prazo que dependia disso. O funcionário, depois de culpar o sistema, o vírus, respondeu: “Querida, vou ver para você o que aconteceu”.

Querida?! Fiquei desnorteada. Eu havia contratado um serviço que não havia sido entregue. Qual o motivo para um sujeito que nunca vi na vida me chamar de querida? Eu estava cobrando que ele cumprisse sua parte no acordo comercial que tínhamos e só. Adoçar a voz e chamar a cliente mulher de querida me lembrou que o machismo é estrutural.

Mas eu poderia estar errada, sei do uso do vocábulo como forma de tratamento. Então fui aos dicionários. O Houaiss define “querida” como muito estimada, que se quer muito, a quem se ama, amante, namorado. E em outras línguas? O dicionário francês traz as mesmas definições, o inglês também, o espanhol apresenta: pessoa com quem se tem relações amorosas sem estar casado com ela. Só depois, nas fontes consultadas, aparece “querida” como forma polida de tratamento.

Resume-se, muitas vezes, a violência de gênero à agressão física, ao feminicídio, ao assassinato motivado pela identidade sexual da vítima, mas essa é a ponta do iceberg, o que fica abaixo da superfície sustenta esse todo. Nunca estudei gênero, trabalho com pessoas que pesquisam profundamente o assunto e, por respeito ao trabalho sério que fazem, não ouso fazer nenhum apontamento teórico.

O que vou apontar é o uso da linguagem. Nossa forma de pensar, de sentir, de nos apaixonar, de odiar, de lidar com a pandemia, com as diversas crises, enfim, todo nosso viver é determinado pela linguagem. É de conhecimento comum que quanto maior o vocabulário, mais fácil será pensarmos sobre nosso mundo e o lugar que temos nele.

Usar no nosso léxico cotidiano o feminino e o masculino, refletir sobre a importância da criação de uma forma que englobe as diversas identidades sexuais na linguagem é dar um lugar de pertencimento a todos no mundo. Quando a presidenta Dilma Roussef insistiu no uso da terminação em “a” no final do título do cargo conquistado, tivemos aí a chance de ratificar o direito da mulher de exercer o mais alto cargo público de nossa nação. Inúmeras críticas surgiram ao uso da palavra no feminino “presidenta”. Como povo, fracassamos. Fracassamos em validar que todo cidadão, não importando sua identidade sexual, tem direito a exercer a função para qual foi eleito. Tanto fracassamos que o golpe de 2016 trouxe um pedaço submerso do iceberg; elegemos, em 2018, um claro representante misógino, homofóbico, racista... Elegemos aquele que, infelizmente, representa toda a cultura que tentamos esconder sob o véu da cordialidade.

Não esqueço aqui do importante debate sobre o uso do “e” ou do “x” no lugar do “a” e do “o” que definem o gênero das palavras. Amigues ou amiguxs, não sei como vamos terminar resolvendo isso. Mas vamos! E farei uso, pois essa será a única forma de derretermos o glacial que não deveria ter mais lugar na atualidade.

“Querida, vou ver para você o que aconteceu” dito por alguém com quem tenho unicamente uma relação comercial remete-me ao lugar daquela que deve ser objeto de amor, cuidado, e não de respeito. Rebaixa-me. Nunca mais contrato essa empresa.

Mas quando abro uma mensagem e leio “Querida...” escrito por quem também quero bem, sou diretamente remetida ao sentido primeiro do vocábulo. Entendo: “Ei, você, a quem quero muito...” e a palavra retorna à sua delicadeza original. Ressoa, em meus ouvidos, o poeta: “Te encontro, com certeza/ talvez no tempo da delicadeza”.


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