O ser cidadão

"Regras de Mandela": olhar humano sobre a pena e o tratamento ao preso

Os princípios estabelecidos nas "Regras de Mandela" vão ao encontro de garantias fundamentais do cidadão estabelecidas na Constituição Federal Brasileira de 1988

Maria Helena Barbosa/ especial para O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h19
Ressocialização acontece com a possibilidade de aprender profissões, sendo tratado com respeito, valor e dignidade, inerentes ao ser humano
Ressocialização acontece com a possibilidade de aprender profissões, sendo tratado com respeito, valor e dignidade, inerentes ao ser humano (interno)

São Luís - “Nenhum preso deverá ser submetido a tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes...”. É o que diz a primeira das 122 “Regras de Mandela”, que norteiam a gestão do sistema prisional e o tratamento da pessoa presa em todo o mundo. O estatuto homenageia Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul - onde a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou o documento, em 2015.

O líder político ficou preso por 27 anos e inspirou a criação dos parâmetros internacionais para o tratamento aos presos. A aplicação das “Regras de Mandela” no sistema de Justiça e Segurança Pública marcou o encerramento da Semana de Humanização da Pena e Promoção da Vida no Sistema Prisional” (22 a 25/06), voltada para a reflexão e conscientização na comunidade, na passagem do “Dia Internacional em Apoio às Vítimas de Tortura” – 26 de junho.

Os princípios estabelecidos nas “Regras de Mandela” vão ao encontro de garantias fundamentais do cidadão estabelecidas na Constituição Federal Brasileira de 1988. No artigo 5º, inciso III, a nossa lei máxima diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

Paralelamente, a Lei de Execução Penal brasileira (nº 7.2010/1984) objetiva disciplinar a aplicação de sentenças e decisões criminais, e proporcionar condições para a integração social do condenado e do internado, atribuindo ao Estado o dever de prestar assistência aos presos.

“O grau de humanização da pena revela muito sobre o nível de civilização de determinada sociedade”, observa o corregedor-geral da Justiça, desembargador Paulo Velten Pereira, lembrando que a LEP estende a responsabilidade na fiscalização e acompanhamento da execução penal para todos. “A sociedade deve se engajar e participar desse processo”.

Mas como humanizar a pena? Na visão da AVSI Brasil, é preciso promover um debate “maduro e sereno” sobre essa temática. “É necessário falar da situação do sistema prisional e das políticas penitenciárias e criminais. Aquilo que acontece nos presídios têm impacto na segurança pública”, ressalta Jacopo Sabatillo, vice-presidente da ong.

População carcerária
O Infopen, Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (dezembro/2019), informa que o Brasil tem 773.151 pessoas privadas de liberdade. A terceira do mundo. No Estado do Maranhão, são 12.346, sendo 4.433 provisórios (aguardam julgamento).

Para contribuir no combate à prática da tortura, o Judiciário nacional implementou as “audiências de custódia”. Nelas, pessoas presas em flagrante delito são ouvidas pelo juiz e promotor no prazo máximo de 24 horas, para avaliar se a prisão é ilegal ou desnecessária. Na audiência, o juiz questiona o preso sobre a ocorrência de tortura ou maus-tratos.

Marcelo Moreira, juiz coordenador da Unidade de Fiscalização e Monitoramento Carcerário do TJMA, recorre ao princípio constitucional da fraternidade na mediação do diálogo com a sociedade, diante da repercussão negativa do crime. “A sociedade não consegue enxergar o criminoso como alguém que deva ser punido, mas que em breve voltará à sociedade. É necessário informar que esse é o compromisso do Estado”, afirma.

Direito a autodeterminação
Um dos princípios básicos das “Regras de Mandela” atesta que o encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio social retiram dessas pessoas “o direito à autodeterminação”. Por isso, assegura, o sistema prisional não deve agravar o sofrimento da pessoa presa.

Para o secretário estadual de administração penitenciária, Murilo Andrade, “Onde o Estado não está presente, efetivamente, abrem-se brechas para a corrupção, maus tratos e tortura”. Ele aponta cinco “pilares” para o combate à tortura intramuros: normatização técnica; readequação logística-estrutural; capacitação e valorização de servidores; fortalecimento das corregedorias e ouvidorias e articulação com o Sistema de Justiça.

Segundo essas regras, os presos têm direito à assistência jurídica efetiva e a fazer solicitação ou reclamação sobre seu tratamento à administração prisional e às autoridades competentes. Queixas de tortura ou ato de crueldade devem ser investigados de imediato. São proibidos o confinamento solitário indefinido ou prolongado; o encarceramento em cela escura ou continuamente iluminada; castigos corporais, redução da comida e água e castigos coletivos, diz a Regra 43.

O juiz Douglas de Melo Martins, especialista no assunto, exalta a importância de defender, não apenas essas regras, mas de todo sistema de proteção dos diretos humanos. “Não seriam necessárias as mais de cem regras, se a primeira delas – “Todos os presos devem ser tratados com respeito, devido ao seu valor e dignidade inerentes ao ser humano...” - fosse respeitada”, pontua.

Diz ainda que o tratamento aos encarcerados deve ter como propósito criar nos presos a vontade de levar uma vida de acordo com a lei e capacitá los para o retorno à vida em sociedade. “Tudo isso deve ser feito de acordo com as necessidades individuais de cada preso, levando em consideração sua história social e criminal, suas capacidades e aptidões mentais, seu temperamento pessoal, o tempo da sentença e suas perspectivas para depois da liberação”, diz o texto.

“O viés da ressocialização gera polêmica entre os próprios operadores do Direito, como se as assistências e direitos do preso fossem privilégios ou opção àqueles. “Ao juiz da execução penal não se dá opção, é dever deste, previsto no artigo 66 da LEP”, enfatiza a juíza Mirella Cézar Freitas, coordenadora da campanha de humanizaçã da pena.

APACs
No processo de reintegração social, entra em cena o trabalho da APAC (Associação de Assistência aos Condenados), em auxílio ao Poder Judiciário e Executivo. O baixo índice de reincidência de homens e mulheres assistidas, de 15%, comparado ao sistema prisional, de 80%, demonstra o sucesso da metodologia, com 2.665 recuperandos no Brasil. Em todo o país, funcionam 52 APACs. Mais 81 estão em implantação. No Maranhão funcionam em São Luís, Imperatriz, Pedreiras, Bacabal, Itapecuru-Mirim, Timon e Viana.

“A lei quer da gente, não apenas o castigo. Mas punir e recuperar. E como recuperar? E como valorizar uma pessoa a quem a sociedade já deu o atestado de óbito social? Questiona o juiz Luís Carlos Rezende e Santos, vice-presidente da FBAC. Para o magistrado, a resposta está na comunidade: “Todos têm de querer”.

Nesse contexto, as “Regras de Mandela” apontam que o papel da sociedade não termina com a liberação do preso. Nessa linha, recomenda o trabalho de agências governamentais ou privadas com competência para prestar acompanhamento pós soltura de forma eficiente, direcionado à diminuição do preconceito contra o preso e visando à sua reinserção social.

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