Violência

Mais de 20 mil negros foram assassinados em 17 anos no estado do Maranhão

Atlas da Violência aponta que em 17 anos, 21.841 pessoas negras foram vítimas de homicídio no estado; desse total, 21.456 eram do sexo masculino

Nelson Melo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h19
Carlos André Pacheco morreu em confronto com policiais no Coroadinho, em dezembro de 2019
Carlos André Pacheco morreu em confronto com policiais no Coroadinho, em dezembro de 2019 (negro confronto)

SÃO LUÍS - O mundo está revoltado com a morte do ex-segurança negro George Floyde, durante uma abordagem policial em Minneapolis, nos Estados Unidos da América (EUA), no último dia 25 de maio. O ato, que mostra a vítima com o pescoço prensado pelo joelho de um policial branco, foi filmado. A violência contra a população negra possui estatísticas preocupantes. Em 10 anos, foram assassinados 21.841 no Maranhão. Desse total, a maioria era homem. Esses homicídios ocorreram entre 2000 e 2017.

Segundo levantamento do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – que tem parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública -, no ano 2000 foram registradas 230 mortes de homens negros no Maranhão. Daquele período em diante, os números apenas aumentaram. Em 2001, foram 403 assassinatos. Em 2002, foram 462. Em 2003, ocorreram 599. Em 2004, ocorreram 587. Já em 2005, aconteceram 725 homicídios, como indicado na pesquisa.

Em 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017, ocorreram, respectivamente, 753, 911, 1.030, 1.143, 1.242, 1.255, 1.459, 1.788, 2.048, 2.003, 1.963 e 1.855 assassinatos de homens negros no estado. No total, foram 20.456 casos. Esse número foi grande, quando comparado à quantidade de mortes de mulheres negras no Maranhão. De acordo com o Atlas da Violência, as estatísticas de homicídios que tiveram vítimas do sexo feminino foram de 1.385.

Essa quantidade ocorreu entre os anos 2000 e 2017. O mais violento para as mulheres negras foi 2014, quando 129 foram mortas no Maranhão. Essas estatísticas preocupantes mostram o quanto as minorias continuam sendo atacadas, em muitos casos, apenas para o deleite do agressor. Isso também é um reflexo da forma como a história da população negra foi transmitida. Segundo o antropólogo brasileiro-congolês Kabengele Munanga, esses relatos foram contados do ponto de vista do “outro”, de maneria depreciativa e negativa.

“O essencial é reencontrar o fio condutor da verdadeira história do Negro que o liga à África sem distorções e falsificações. A consciência histórica, pelo sentimento de coesão que cria, constitui uma relação de segurança mais sólida para cada povo. É a razão pela qual cada povo faz um esforço para conhecer e viver sua verdadeira história e transmiti-la para as futuras gerações”, salienta o antropólogo Kabengele Munanga, considerado uma das principais referências na questão do racismo na sociedade brasileira, em “Negritude e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao avesso?”, na Revista da ABPN.

Morte como espetáculo

As pesquisas mostram que os negros são mais vulneráveis à violência, incluindo os assassinatos. Algumas mortes ganham um aspecto de espetáculo, tal qual ocorria na Roma antiga, quando, no Coliseu, a plateia delirava com a luta de gladiadores. Os “heróis da arena” brigavam até a morte, para a alegria de quem assistia aos embates. Do outro lado do Oceano Atlântico, no litoral maranhense, uma multidão se comportou de maneira similar ao observar o corpo de um homem negro amarrado a um poste de iluminação pública, como uma pintura de Jean-Baptiste Debret, que mostra um escravo amarrado a um tronco sendo chicoteado enquanto outras pessoas olham em uma praça.

O homem amarrado ao poste se chamava Cleidenilson Pereira da Silva, que tinha 29 anos e era conhecido como “Xandão”. Ele foi morto no dia 6 de julho de 2015, no bairro São Cristóvão, após uma tentativa frustrada de assalto a um estabelecimento comercial. Suas mãos, pés e o corpo foram amarrados por uma corda e presos a um poste de energia elétrica. Logo em seguida, teve as roupas arrancadas e foi brutalmente espancado pelos moradores com chutes, socos, pedradas e até mesmo garrafadas.

O crime foi investigado pelo delegado Guilherme Sousa Filho, da então Delegacia de Homicídios da Capital, hoje Superintendência Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP). Na época da tentativa de assalto, Cleidenilson Pereira estava na companhia de um adolescente, que também foi agredido pelos populares, mas resistiu aos ferimentos.

Negros no Maranhão

Os pesquisadores Kátia Evangelista Regis, Marcelo Pagliosa e Gracy Kelly Souza relatam, em um trabalho acadêmico sobre as lutas e proposições do Movimento Negro no Maranhão, que no Brasil, a partir de meados da década de 1970, emergiram movimentos sociais que lutavam por melhores condições de vida, reivindicando direitos que influenciariam as políticas públicas no período constituinte. Nesse sentido, houve a denúncia da discriminação racial e o racismo na sociedade brasileira.

“A unificação das entidades que lutavam contra o racismo ocorreu em 18 de junho de 1978 por meio da criação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (o nome foi simplificado para MNU), durante a realização de Ato Público reunindo mais de três mil pessoas nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo”, enfatizam os pesquisadores. Conforme eles, os fatos que determinaram a sua convocação foram: a morte do trabalhador negro Robson Silveira da Luz, no mês de maio daquele ano, decorrentes das torturas executadas por policiais em uma delegacia de Guaianases, a expulsão de quatro atletas negros do time juvenil do Clube de Regatas Tietê e o assassinato do operário negro Nilton Lourenço por um policial no bairro da Lapa.

Então, nos anos 1980, diversos encontros e seminários que foram organizados ou apoiados pelos negros tiveram a educação como tema fundamental. Ao discorrerem sobre a história do Movimento Negro no Maranhão, os autores do trabalho comentam que isso está estritamente relacionado a uma vasta gama de lutas nas áreas rurais e urbanas, especialmente de São Luís. Eles mencionam a Balaiada, que ocorreu na primeira metade do século XIX, sendo considerada uma das principais revoltas de escravizados ou libertos da história brasileira

“É reverenciar Cosme Bento das Chagas (1800-1842), o Negro Cosme, um dos principais líderes balaios. Assassinado há quase um século e meio, sua figura ainda permanece venerada pelos(as) negros(as) maranhenses como um exemplo de grande guerreiro que lutou contra a sociedade escravista: Negro Cosme, o Imperador da Liberdade”, explicam os autores. Os pesquisadores também citam Maria Firmina dos Reis (1825-1917), professora e autora de um dos primeiros romances abolicionistas: Úrsula. Ela é considerada a primeira romancista brasileira.

Segundo eles, a Balaiada não foi a única resistência ocorrida na área rural no período escravista, pois muitos foram os quilombos formados na época colonial e imperial que foram catalogados pela historiografia em várias regiões do atual Estado do Maranhão: na Baixada Maranhense, em Codó, nos vales do Turiaçu, entre outras. Comenta-se que a abolição da escravidão não garantiu a inclusão social (educacional, de políticas de saúde, moradia, entre outros) da população negra.

Os autores pontuam que, em 1988, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e o Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN/MA) criaram o “Projeto Vida de Negro”, que desenvolve ações para os encaminhamentos legais, estudos e identificação de áreas para titulação de posse definitiva pelos quilombolas. “Um momento muito especial para todas(os) as(os) integrantes do movimento negro do Maranhão foi a inauguração, em 2015, da primeira Licenciatura em Estudos Africanos e AfroBrasileiros do país na Universidade Federal do Maranhão (UFMA)”, observam eles.

Injúria e racismo

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os conceitos jurídicos de injúria racial e racismo são diferentes, embora impliquem a possibilidade de incidência da responsabilidade penal. O primeiro está descrito no Código Penal Brasileiro (CPB), mais precisamente, no Artigo 140, parágrafo 3. Já o segundo está previsto na Lei nº 7.716/1989, que pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

A injúria racial consiste em ofender a honra de alguém, valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. A consequência penal é reclusão de um a três anos, além de multa e pena correspondente à violência, para quem cometê-la. Isso significa que injuriar significa ofender a dignidade ou o decoro utilizando aqueles critérios estabelecidos pela legislação. O racismo, por sua vez, atinge uma coletividade indeterminada, discriminando toda a integralidade de uma raça. Trata-se de um crime inafiançável e imprescritível, segundo o CNJ.

“Em geral, o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima”, pontua o Conselho Nacional de Justiça. O órgão dá o exemplo no qual torcedores do Grêmio insultaram um goleiro de raça negra chamando-o de “macaco”, durante uma partida de futebol. Nessa situação, o Ministério Público entrou com uma ação no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que aceitou a denúncia, aplicando medidas cautelares, como o impedimento dos acusados de frequentar estádios.

Ainda segundo o CNJ, com relação ao crime de racismo, ocorre uma conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade, e, geralmente, refere-se a delitos mais amplos. “Nesses casos, cabe ao Ministério Público a legitimidade para processar o ofensor. A lei enquadra uma série de situações como crime de racismo, por exemplo, recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou às escadas de acesso, negar ou obstar emprego em empresa privada, entre outros”, destaca o órgão.

No caso do racismo, o crime é inafiançável e imprescritível, conforme o Artigo 5º da Constituição Federal (CF). Já a injúria racial prescreve em oito anos, antes de transitar em julgado a sentença final.

Morte nos EUA

No dia 25 de maio deste ano, George Floyd foi covardemente assassinado por um policial branco nos EUA, o que gerou revolta e protestos não apenas lá, como, também, em vários países. A vítima foi alvo de uma operação por, supostamente, tentar pagar uma conta em uma mercearia com nota falsa de U$$ 20, como foi relatado pela imprensa norte-americana. Uma primeira análise forense não indicou evidências de que o ex-segurança negro não resistiu por asfixia. No entanto, outros dois exames apuraram que ele morreu por sufocamento.

O policial foi preso e acusado de homicídio culposo, além de assassinato em terceiro grau, que ocorre quando o responsável pela morte atua de forma irresponsável ou imprudente. Como as imagens da cena circularam na internet, iniciaram-se vários protestos antirracismo nos EUA e em outros países. Houve registro de saques em Nova York e confrontos violentos com as forças de segurança.

Por que o racismo?

Em 1932, médico neurologista Sigmund Freud, fundador da Psicanálise, e o físico Albert Einstein, criador da Teoria da Relatividade, trocaram cartas, que foram publicadas com o título “Por que a guerra?”. A correspondência tinha o objetivo de entender as razões que levavam o homem aos conflitos bélicos, como maneira de evitá-la. As duas cartas tratam da violência humana e do terrível papel que a indústria armamentista exerce sobre essa conduta, que causa estragos sociais, financeiros e emocionais.

Com essa mesma reflexão, poderíamos indagar: por que o racismo? Essa pergunta nos remete a fatores históricos, cujas raízes continuam firmes em pensamentos preconceituosos sobre a forma, em detrimento do conteúdo. A cor da pele não deveria ser um critério para descrições sobre o comportamento de alguém, como se isso, por si só, fosse essencial para a consolidação do afeto. O mundo físico é apenas uma parte do mundo psicológico, que tem a capacidade de discernir o verdadeiro do falso.

O negro é, antes de tudo, um ser humano, que merece ser respeitado. Suas conquistas históricas não podem, jamais, ser esquecidas ou ignoradas, ou muito menos deturpadas em prol de interesses ideológicos. A compreensão afetiva deveria ser anterior à compreensão penal. Isso significa que as agressões decorrentes da cor da pele são tão levianas quanto os motivos que incitaram o racismo. O racista é insensível ao modo de vida, às paixões, aos desejos, às necessidades, aos sonhos de quem ele odeia.

A coletividade é desprezada por quem se comporta dessa forma, agredindo verbalmente e fisicamente os negros. Mário Quintana disse certa vez: “A maior dor do vento é não ser colorido”. O que fazemos na sociedade é o que realmente importa, mesmo que, às vezes, não possamos ser notados ou reconhecidos. O respeito é o que nos resta. Dê um basta ao racismo!

Mortes de homens negros no Maranhão

2000 - 230

2001 - 403

2002 - 462

2003 - 599

2004 - 587

2005 - 725

2006 - 753

2007 - 911

2008 – 1.030

2009 – 1.143

2010 – 1.242

2011 – 1.255

2012 – 1.459

2013 – 1.788

2014 – 2.048

2015 – 2.003

2016 – 1.963

2017 – 1.855

Morte de mulheres negras no Maranhão

2000 - 24

2001 - 36

2002 - 31

2003 - 58

2004 - 44

2005 - 49

2006 - 58

2007 - 50

2008 - 67

2009 - 67

2010 - 99

2011 - 109

2012 - 96

2013 - 107

2014 - 129

2015 - 115

2016 - 133

2017 - 113

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