Artigo

Conto da quarentena

José Ewerton Neto, autor de A Ânsia do Prazer

Atualizada em 11/10/2022 às 12h20

Alírio sempre foi um solitário. Gabava-se disso. Dizia: “Quem procura a companhia dos outros é porque não consegue suportar a si mesmo”. Sem filhos, tinha uma namorada aqui outra ali, porque sedução não lhe faltava. Esse seu modus vivendi era, para ele, a felicidade: amava as mulheres desde que não o tirassem de sua solidão, sua mais querida companheira.

A pandemia chegou e, com ela, a quarentena. Na ocasião os amigos lhe diziam, com uma ponta de inveja: “Para você tudo bem, não é Alírio? Sempre foste um lobo solitário”.

Veio a primeira semana, depois outra, mais outra, e o que não se esperava aconteceu: Alírio perturbou-se com essa nova solidão. A razão foi fácil descobrir: “Uma coisa é ser solitário por vontade própria, outra é sê-lo por imposição. Estavam lhe roubando também a sua liberdade, associada à sua solidão”. Lembrou-se de uma frase de Rubem Braga “O chato é aquele que te rouba a solidão sem te fazer companhia.”

E a quarentena continuou. Só havia espaço agora, na vida, para políticos se digladiando, cientistas atarantados e repórteres histéricos. Uma ideia lhe acudiu: se suicidar. Por que não? Parecia-lhe uma solução factível, mas logo recuou. Talvez, se encontrasse quem o matasse, mas isso era impraticável. E Agora?

Uma coisa puxa outra. Uma nova ideia lhe pareceu exequível: matar alguém. Por exemplo: o vizinho de seu apartamento. O desgraçado perturbava sua solidão, agora angustiante, com sons de música sertaneja, estrondosos, paupérrimos, avassaladores. Isso era tétrico, horripilante, asqueroso. Um motivo mais que suficiente para matar alguém, pensou.

Tinha um revólver antigo, escolheu o dia e a hora, mas não deu. Seu vizinho, parecendo desconfiar do motivo pelo qual ia ser morto, de repente, parou de escutar o maldito som de dupla sertaneja e o substituiu por samba, rock e jazz, que Alírio apreciava. Alírio desistiu de sua intenção, mas não foi apenas por isso. Era um homem bom.

Mais dias se passaram, trazendo-lhe uma nova ideia. Matar um animal e procurar a polícia. Passou a acompanhar cachorros e gatos nas raras vezes em que o permitiam sair de seu apê. Nem precisaria gastar a bala do seu revólver, bastava-lhe uma pedra. Em vão. Até que em uma manhã de desespero aconteceu. Um rato apareceu no chão de sua sala, em quietude convidativa. Mesmo tomado de inquietante compaixão Alírio apontou o revólver. Não apontou pra valer, mas o animal morreu. Lágrimas lhe desceram dos olhos.

Em seguida, foi à delegacia se apresentar ao delegado de plantão.

- Eu cometi um crime, pode me prender, sou um assassino.

- Como?

- Matei um pobre animal. Este rato.

- Senhor, não podemos lhe prender por causa de um rato morto. Vá para casa, descansar. Essa tensão tá pegando meio mundo.

Alírio fez a maior confusão e ameaçou chamar repórteres da tevê. Gritou que aquele era um pobre animal que, no entanto, valia mais que os seres humanos - pelo menos ratos não corriam para suas tocas com medo de um vírus. E devia valer muito mais, também para Deus, porque não roubavam o dinheiro da Saúde destinado às vítimas. O delegado tentou contornar.

- Calma, amigo, sente-se. Uma psicóloga está vindo.

- Poupe seu trabalho. Da minha solidão cuido eu. Você já leu algum dia esta frase de Montaigne? Anote-a em seu caderno:

“A solidão é muito boa, só que tem um problema. Você precisa de alguém para dizer isso.”

E-mail: ewerton.neto@hotmail.com

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