Entrevista

Arte como espelho da realidade

O maranhense Dionisio Neto, ator, escritor e dramaturgo premiado, radicado há décadas em São Paulo, aborda em alguns de seus trabalhos uma sociedade confinada que agora se torna real

Carla Melo/De O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h20
Dionísio Neto em cena da peça Perpétua
Dionísio Neto em cena da peça Perpétua (dionisio)

SÃO LUÍS- Há 25 anos, o escritor, ator e dramaturgo maranhense Dionisio Neto escrevia sua primeira peça teatral, “Perpétua”, que previa um confinamento num futuro próximo. A produção aborda a história de um poeta esquizofrênico e solitário que resolve comemorar seu aniversário com Perpétua, prostituta de peep show, em uma boate. Devido a um toque de recolher, eles são obrigados a passar a madrugada juntos. Atormentado por um sonho em que ela o mata, ele fica assombrado com a semelhança entre a realidade e o sonho, confundindo os dois. Nesta entrevista, o artista fala sobre o paralelo entre o momento atual de pandemia e as semelhanças entre realidade e ficção, além de abordar carreira e planos futuros.

Como você vê a relação entre sua peça “Perpétua”, que foi apresentada na primeira edição da Semana do Teatro no Maranhão, ainda em 2005, e o momento atual?

Para escrever "Perpétua" eu bebi em alguns clássicos do cinema como "Da vida das marionetes", de Ingmar Bergman, "Hiroshima mon amour", de Alain Resnais e de meu convívio por três anos como ator do Antunes Filho. Meu personagem na peça é muito ele. Desta maneira, por esta raiz forte e profunda, a peça continua atual, não ficou datada, mesmo porque eu me lancei na poética da ficção-científica, e bebi também no mestre quadrinista Moebius. Coloquei as referências no liquidificador da minha imaginação e daí nasceu a peça. Sem falar nos perpétuos do "Sandman", do Neil Gaiman, que conduzem as ações da peça. O imaginário da peça ficou suspenso, com vida própria. Na época do lançamento do Festival de Curitiba um certo crítico disse que um toque de recolher jamais aconteceria e muito menos em um futuro próximo. Ele errou sua previsão e eu acertei a minha. Nós, artistas, temos uma antena muito forte com o inconsciente coletivo. A minha captou isso. E ainda mais com o aumento do feminicídio retratado na peça, que infelizmente está aumentando durante o confinamento. A vida está imitando a arte. "Perpétua" está mais atual do que nunca.


Fale um pouco sobre sua rotina nesta quarentena, o que tens feito?

Eu descobri que meu estilo de vida se chama quarentena. Fico muito em casa. Pratico exercícios via aplicativos, sempre fui muito ligado em tecnologia desde criança. Adoro computadores. Sempre adorei. Estou terminando finalmente meu primeiro romance - "Perla Stuart, a ex-mulher", sobre uma mulher libertária, hedonista e livre, apaixonada por muitos homens. Uma espécie de Don Juan mulher. Já passei da metade. Estou escrevendo há alguns anos. O livro tinha emperrado, mas agora eu achei o fio de Ariadne. Está fluindo. Me obriguei a uma disciplina ferrenha para poder escrever. Também faço lives, vejo as lives dos meus amigos, converso com eles. Leio meus textos nelas. Alguns monólogos das peças "Olerê! Olará!" e "Corações partidos e contemplação de horizontes" também se encaixam perfeitamente neste momento de confinamento coletivo. No começo do confinamento eu saía para correr, mas agora estou ficando em casa mesmo, saindo somente para o supermercado. É muito importante ficar dentro de casa. Eu amo a minha casa, é meu templo. Também leio bastante. Terminei a biografia da dona Fernanda Montenegro e estou terminando "As afinidades eletivas", de Goethe. Montei recentemente "Os sofrimentos do jovem Werther" dele, dirigindo o ator Adriano Arbol. Estou apaixonado por este grande homem e grande autor. Eu simplesmente não consigo ficar parado. Tenho outros dois romances na fila para escrever. Trabalho é o que não falta.

Estás produzindo um romance. Podes adiantar algo?

"Perla Stuart, a ex-mulher" é o primeiro de uma série de romances que quero fazer com esta personagem. É a minha Harry Potter. Já tenho a ideia do próximo da saga. Uma personagem plena de possibilidades. Estou vivendo na pele o que sempre ouço dos grandes autores, que os personagens falam conosco. Perla conversa comigo todos os dias. Tem desejos, e eu os escrevo e recrio. É um romance leve, engraçado, poético, com um perfume de Bukowsky, e um namoro com "Memórias póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. É pop. Quero que seja lido pelas massas. Ainda que elas não leiam tanto assim. Além do romance, também continuo trabalhando na adaptação da peça "Perpétua" para o cinema. Estou cada dia mais próximo de algo filmável. Há uma versão para ser filmada no Maranhão. Quem sabe não seja filmado aí.

Para você, qual o papel da arte neste momento pelo qual a humanidade atravessa?

O filósofo alemão Nietzsche dizia que "temos a arte para não morrer de verdade". Mesmo para os mais rústicos, passar esses dias sem cantarolar uma simples canção creio que seja impossível. A arte acalenta a alma, amplia nossa visão de mundo, abre as portas da nossa mente. Neste nosso período histórico os dogmáticos saíram do armário. É inútil conversar com eles. Eles não tem dúvida de nada, são pessoas de um pensamento fechado, limitado, cheio de certezas. E a dúvida é a característica primordial da inteligência. A arte nos faz ter muitas questões sobre o que vemos e sentimos. Concordo com o alemão.

Muita gente tem dito que aproveita o período para repensar a vida. Você está fazendo isto? se sim, o que mudará?

No meu caso eu repenso a vida todos os dias. A metáfora de um artista de circo que anda na corda bamba equilibrando pratos expressa bem o que somos, principalmente no Brasil e principalmente neste período que execra simplesmente qualquer pessoa que pense minimamente. O mundo enguiçou, o capitalismo quebrou. Historicamente depois das pestes vem o renascimento, e como a vida é cíclica, e como a história se repete, creio que um novo mundo virá com a nova década que se iniciará ano que vem. Ficou muito claro para mim que a Liberdade é nosso maior tesouro, e ela não é algo material. Aliás, chegamos em um momento em que o excesso de dinheiro não serve para nada. Ficou claro que todos dependemos de todos, que somos uma espécie coletiva, e que a vida sem o outro não tem a menor graça. É uma lição amarga que o mundo está passando, é como se todos tivessem sido condenados a prisão por crimes cometidos contra a natureza e a humanidade. A arrogância e a burrice estão pagando um preço altíssimo por terem negado o óbvio. E infelizmente nos tempos atuais estão matando o mensageiro e fechando os olhos para a notícia que ele traz.

Quais seus planos para depois da pandemia?

Tenho duas temporadas dos espetáculos "Desamor" e "Jonas e a Baleia", de Walcyr Carrasco, sob direção da Lucia Segall (neta do pintor Lasar Segall) marcadas no Centro Cultural da Diversidade e na SP Escola de Teatro em São Paulo. Também estrearei o espetáculo do Goethe a que me referi. Filmarei o longa "Três mulheres e um revólver" do jovem e talentoso diretor Alexandre Alencar. Também escrevi meu primeiro livro infantil "Miguel e Helena", sobre um menino que não gosta de brincadeiras de menino que se apaixona por uma menina que não gosta de brincadeiras de menina. Pretendo lançar "Perla Stuart, a ex- mulher" e outros projetos muito bacanas que quando for a hora certa falarei para você.


Mais

Trecho do romance "Perla Stuart, a ex- mulher"

1. Como Perla saiu de uma cobertura no Ibirapuera para uma cabeça de porco no centro de São Paulo.

Perla Stuart.

Sua vida era um eterno e inebriante domingo de dezembro.

Poucos sabiam dos pinos do seu pé. Ela só contava para quem queria. Poucos sabiam sobre seu exame de sangue. Desse, só mesmo seu médico. Nenhum ex-marido. Nenhum. Nem mesmo Domenico de Alcântara e Albuquerque Sampaio. Nem tampouco sua filha Margarida. Margaridinha. Tão linda quanto os primeiros anos de Perla. Olhos de uma, sorrisos da outra. A voz também era a mesma, e as vezes não sabíamos mais quem imitava quem.

Perla e seus cabelos de bruxa de Bragança Paulista, Perla e seu colar verdadeiro de pérolas japonesas. Perla e seu colar falso de pérolas chinesas. Perla e seus cabelos de dondoca dos Jardins.

Todas eram Perla. Confundiam-se, contradiziam-se, misturavam-se para lados opostos que as fazia empacar. Foi detectado por seu analista um princípio de depressão. Começou a tomar comprimidos. Mas não era para ser assim. Sua infância sempre fora saudável. Pegava amoras no pé, matava galinhas, sempre com a mesma animação, o mesmo riso extravagante que saia em melodiosos espasmos em lá maior.

Perla tinha dormido apenas três horas naquele domingo. Não se lembrava de quase nada da festa da casa de seu amante guitarrista, filho do maior guitarrista do país onde tinha beijado uma dezena de homens feios na boca. Ainda estava bêbada. Estava se embriagando demais nos últimos meses. Nos últimos anos para ser mais exato. Não tinha tampouco tirado os cílios postiços. Seus olhos estavam grudados.

- Ai...

Acordou naturalmente. Desta vez não foi por causa das pulgas que empesteavam seu pequeno apartamento alugado na Rua Amaral Gurgel.

O interfone já estava tocando há pelo menos meia hora. Não ouviu. Bateram na sua porta. Levantou-se ainda cambaleando num misto de medo e confusão. Quem seria àquela hora? E num domingo?

- Coisa boa não chega tão cedo.



Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.