Livro

A história de Tristão e Isolda em edição bilíngue

"O romance de Tristão", de Béroul, uma obra-prima da literatura medieval ganha edição traduzida do francês arcaico

Atualizada em 11/10/2022 às 12h20
(tristão e Isolda)

São Paulo - A história de Tristão e Isolda, de origem celta, não só incendiou a imaginação de poetas, músicos, ficcionistas e dramaturgos por vários séculos — tendo inspirado a célebre ópera de Wagner —, como nutriu aquela que talvez seja a principal concepção de amor do Ocidente: a que considera a paixão amorosa uma loucura, mas também uma bem-aventurança, a qual, para se realizar, não hesita em desafiar as leis e os costumes.

A presente edição de "O romance de Tristão" é bilíngue, apresentada e traduzida por Jacyntho Lins Brandão, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e foi vertida diretamente do francês arcaico e recupera, em nossa língua, todo o brilho, o frescor, a inventividade e o colorido dos 4.485 versos dessa indiscutível obra-prima da literatura medieval.

O romance de Tristão, de Béroul, é uma narrativa rimada e metrificada, composta entre 1150 e 1190, que integra o ciclo de histórias do rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda. Considerado uma verdadeira joia dos primórdios do romance moderno, nele não faltam poções mágicas, juras e mal-entendidos, emboscadas, intrigas, travestimentos e mascaradas, numa sucessão de reviravoltas que combinam heroísmo, malícia, humor e lealdade, atravessados por um lúdico e saudável erotismo.

Sobre o autor

“Não sabem bem como é a história,/ Berox a guarda em sua memória”. Esta é a primeira das duas únicas alusões ao nome Berox — ou Béroul — em todo O romance de Tristão. São essas duas ocorrências, nos versos 1.267-8 e 1.790, respectivamente, a pista para que se considere este o misterioso autor desta obra rimada e metrificada de 4.485 versos. Como a narrativa foi composta provavelmente entre os anos de 1150 e 1190, e integra a chamada “matéria de Bretanha” — o ciclo de histórias em torno do rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, presume-se que Béroul foi um poeta normando, escrevendo em língua vulgar, no caso o francês, vivo no século XII.

Sobre o tradutor
Jacyntho Lins Brandão é professor emérito da UFMG, onde lecionou língua e literatura grega de 1977 a 2018, tendo exercido ainda os cargos de diretor da Faculdade de Letras (1990-1994 e 2006-2010) e vice-reitor (1994-1998). Doutor em Letras Clássicas pela USP (1992), foi professor visitante da Universidade de Aveiro, em Portugal (1998-1999). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Desde 2018 é membro da Academia Mineira de Letras e, atualmente, professor visitante da Universidade Federal de Ouro Preto. Publicou livros sobre a literatura grega: A poética do hipocentauro (Editora UFMG, 2001), A invenção do romance (Editora UnB, 2005) e Antiga musa (Relicário, 2015). Traduziu, do grego, Como se deve escrever a história, de Luciano de Samósata (Tessitura, 2009), bem como, do acádio, Ele que o abismo viu: ep opeia de Gilgámesh (Autêntica, 2017) e Ao Kurnugu, terra sem retorno (Kotter, 2019). É autor ainda de obras de ficção: Relicário (José Olympio, 1982), O fosso de Babel (Nova Fronteira, 1997) e Que venha a Senhora Dona (Tessitura, 2007).

Texto de orelha
A palavra latina factum possui uma duplicidade etimológica interessante: se, por um lado, aponta para o que existe, ou seja, o fato real, por outro nos conduz à ideia do que é fabricado, produzido artificialmente. Do que advêm os termos “factual” (verdadeiro, real, palpável) e “factício” (artificial, falso, que parece ser), contraditórios entre si.

São esses sentidos dúbios que atravessam O romance de Tristão, de Béroul, poema narrativo do século XII, que marca o surgimento do romance moderno no Ocidente. O tema do adultério é sua matéria-prima e se dá a ver por vias ambíguas, estrategicamente construídas pelo autor que, entre ditos e não-ditos dos personagens envolvidos, recria a trama do triângulo amoroso entre o rei Marco da Cornualha, seu sobrinho Tristão e a rainha Isolda, a Loura. Abre terreno, assim, para o advento de uma tradição narrativa que, no decorrer dos séculos, articulou o factual e o factício para tratar de um tema que se confunde com a própria história do gênero romanesco.

Tido como uma das primeiras versões francesas — para não dizer a primeira — da lenda irlandesa de origem celta sobre o amor ilícito de Tristão e Isolda, esse poema de 4.485 versos integra o chamado ciclo arturiano. Preservado num único e incompleto manuscrito, no qual faltam o começo e o final, tornou-se o ponto de partida para uma série de versões da história ao longo dos tempos, em várias línguas.

O enredo se resume nisto: o cavaleiro Tristão, célebre por seus feitos heroicos, é encarregado de ir à Irlanda buscar a princesa Isolda para se casar com o rei Marco. Durante a viagem de volta, a dama de companhia da futura rainha dá de beber aos dois, por engano, um filtro do amor preparado pela mãe de Isolda para ser tomado pelo casal real no dia do casamento. Tristão e Isolda, assim, se apaixonam e se entregam, perdidamente, a essa paixão supostamente provocada pelo elixir mágico. A partir daí, muitos são os artifícios usados pelos amantes para viverem — à margem e nas dobras da vida conjugal do rei e da rainha — esse amor proibido. Muitas, também, são as estratégias que usam para burlar as intrigas de pessoas da corte empenhadas em convencer o rei dos atos ilícitos de seu sobrinho com a bela e sagaz Isolda.

Embora irrefutável, o relacionamento amoroso entre o cavaleiro e a rainha é abordado por Béroul por meio de recursos narrativos que tentam controlar a reação dos próprios leitores diante dos acontecimentos e enfatizar a perspicácia de Isolda no uso das palavras para se defender das acusações. Ao tomar partido dos amantes e, através de habilidosas variações do ponto de vista narrativo, conferir ao affair de Tristão e Isolda uma legitimidade não legítima dentro das convenções do tempo, ele não deixa de ironizar as regras do casamento medieval e tomar partido do amor adúltero, liberto das amarras legais.

Em tradução primorosa de Jacyntho Lins Brandão, sempre atento aos sentidos dúbios das palavras e às modulações sonoras do poema medieval, esta edição brasileira do livro de Béroul inclui ainda uma minuciosa introdução crítica feita pelo tradutor, na qual ele apresenta historicamente a lenda irlandesa, levanta questões instigantes sobre seus desdobramentos no mundo literário ocidental e elucida pontos relevantes do processo de transposição do texto original para a nossa língua. Sem dúvida, uma preciosa contribuição para as letras brasileiras contemporâneas.

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