Livro

"A Gaiola", obra central da ficção latino-americana ganha versão em português

Obra do escritor mexicano José Revueltas foi escrita em 1969, na prisão de Lecumberri, na Cidade do México, onde o autor ficou preso por seu papel de líder do movimento estu­dantil de 1968

Atualizada em 11/10/2022 às 12h20
Capa do livro "A Gaiola"
Capa do livro "A Gaiola" (A Gaiola)

São Paulo - Confinados a uma cela de castigo, revezando-se para enfiar a cabeça por uma portinhola exígua, três pobres diabos tentam seguir os menores movimentos do pavi­lhão penal em que se encontram: alertas ao vaivém dos guardas, espreitam mais que tudo a chegada providencial das três mulheres que contrabandeiam a droga, “anjo branco e sem rosto”, e os libertam, por um breve momento, da “sufocante massa de desejo” que os tor­tura e os torna dolorosamente, supremamente huma­nos.

Obra central da ficção latino-americana, inédita em português, "A gaiola" acompanha os ímpetos, as verti­gens, os devaneios de seus personagens à mercê da es­pera, do poder, do acaso. Escrita em 1969, na prisão de Lecumberri, na Cidade do México, onde José Revueltas pagava caro por seu papel de líder do movimento estu­dantil de 1968, esta novela tem seu lugar de direito entre os grandes textos da literatura penitenciária, na vizi­nhança de Graciliano Ramos e Jean Genet. Mas a prosa do autor mexicano vai além: livre, ela sabe ser brutal e lírica, realista e alucinatória, para subverter as rela­ções de força e fazer de A gaiola uma verdadeira pará­bola sobre a condição humana.

Sobre o autor
José Revueltas nasceu em Santiago Papasquiaro, no estado de Durango, México, em 1914. Aos seis anos, mudou-se com a família para a Cidade do México; contudo, a morte precoce do pai e a falência do negócio familiar levaram-no à escola pública e à convivência com os pobres e marginalizados, experiência decisiva em sua vida. Abandonou os estudos formais antes mesmo de terminar o primeiro ano do liceu e iniciou sua militância política na órbita do Partido Comunista Mexica­no. Em 1929, antes de completar quinze anos, participou de um comício na praça central da cidade e foi levado à prisão, onde permaneceu por seis meses. Sua militância valeu-lhe uma segunda temporada de cárcere, em Islas Marías, em 1932; em 1934, detido ao organizar uma gre­ve de peões de fazenda em Nuevo León, voltou ao mesmo presídio, de ond e sairia em 1935.

As prisões serviriam de ponto de partida para seu primeiro romance, Los muros de agua, publicado em 1941 e seguido, em 1943, de El luto humano, que lhe va­leu o Prêmio Nacional de Literatura. Após um período de silêncio, voltou à cena editorial em 1956, com o romance En algún valle de lágrimas. Em 1958, ao mesmo tempo que se engajava nas grandes greves ferro­viárias, publicou o ensaio político México: una democracia bárbara. Em 1960 rompeu com o Partido Comunista e foi um dos fundadores da Liga Leninista Espártaco. Nos anos seguintes aproximou-se do movimento estudantil, participando de marchas, assembleias e ocupações. Após a violenta repressão policial aos estudantes, que culminou no Massacre de Tlatelolco em outubro de 1968, foi detido e condenado a 16 anos de pena na prisão de Lecumberri, local em que, n os primeiros anos de 1969, escreveu a novela El apando (A gaiola). Revueltas foi libertado após dois anos de cárcere, e em 1974 publicou sua última obra literária, os contos de Material de los sueños. Faleceu na Cidade do México em 1976.

Sobre o tradutor
Samuel Titan Jr. nasceu em Belém, em 1970. Estudou filoso­fia na Universidade de São Paulo, onde leciona Teoria Lite­rária e Literatura Comparada desde 2005. Editor e tradutor, organizou com Davi Arrigucci Jr. uma antologia de Erich Auerbach (Ensaios de literatura ocidental) e assinou ver­sões para o português de autores como Adolfo Bioy Casares (A invenção de Morel), Gustave Flaubert (Três contos, em colaboração com Milton Hatoum), Jean Giono (O homem que plantava árvores, em colaboração com Cecília Ciscato), Voltaire (Cândido ou o otimismo), Prosper Mérimée (Carmen) e Eliot Weinberger (As estrelas).

Texto de orelha
Dentre os intrincados fios dessa teia que a Grande Aranha teceu e que costumamos chamar de litera­tura, a linhagem dos livros escritos na prisão é sem dúvida uma das mais valorosas. Se, como dizem, a História é o relato dos vitoriosos, a literatura não deixa de ser a história paralela, contada pelos derrotados. Sade, Dostoiévski, Graciliano, Genet, todos eles enviaram seus recados urgentes a par­tir do xilindró, endereçando-os ao futuro. Nesse contexto e no âmbito da América Latina — região do mundo com forte vocação para penitenciária ou hospício, lugar em permanente convulsão socio­política, em que o autoritarismo volta e meia im­põe suas cartas invariavelmente marcadas —, esta breve novela de José Revueltas, a mais poderosa da ficção mexicana, ocupa posto inescapável.

A gaiola foi escrita durante o período de dois anos em que o escritor e ativista mexicano per­maneceu no cárcere de Lecumberri, na Cidade do México, no rastro das turbulentas manifestações estudantis de 1968 que sacudiram o país e culmi­naram em prisões, tortura e morte. Não era a pri­meira experiência carcerária de Revueltas, preso pela primeira vez em 1932, aos 17 anos, por sua mi­litância no então clandestino Partido Comunista mexicano. Nesta segunda ocasião, ele pagava o preço de ser o líder moral do movimento estudan­til. Lecumberri era um cárcere construído sob as premissas do panóptico, concebidas pelo filósofo utilitarista Jeremy Bentham, que previam que o carcereiro pudesse observar os prisioneiros a todo momento, sem que estes o soubessem.

Em A gaiola, essa perspectiva é invertida e cir­cunscrita, pois os protagonistas Polonio, Albino e o Caralho observam o circo infernal de Lecumberri pela moldura estreita do postigo da cela em que es­tão presos, sob a pressão inegociável da abstinência de droga. O trio aguarda a visita das namoradas, Meche e Chata, que armaram a entrada da droga no cárcere com a cumplicidade da mãe do Caralho: a velha deve levar o pacotinho dentro do corpo, na su­posição de que não será revistada. A angústia da es­pera, amplificada pela visão limitada do postigo, vai aos poucos configurando um quadro saído da visão de pesadelo de um Hieronymus Bosch, que a prosa de Revueltas captura por meio de ritmos ora brutais, ora poéticos.

No prefácio ao romance "O azul do céu", Georges Bataille faz a crucial distinção entre livros escritos como experiência e livros que nascem da mais ur­gente necessidade. A gaiola está entre estes últi­mos. Em suas poucas páginas, José Revueltas nos conduz aos degraus mais baixos da condição hu­mana por meio do relato de uma queda sem fim por uma escadaria que só desce e nunca sobe, num caminho sem volta.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.