Artigo

Cólica alheia

Atualizada em 11/10/2022 às 12h21

Na semana passada, aqui neste espaço, ao falar do vale-tudo do Carnaval do Rio do Janeiro, terminei minha crônica semanal assim: “Aqui em São Luís, estamos mais perto da selvageria, neste aspecto, do que da civilidade. Existe uma decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão determinando aos órgãos do Executivo exigirem dos estabelecimentos com atividades capazes de gerar poluição sonora, isolamento acústico em suas dependências, como pré-condição da licença. Até agora, nenhum órgão fez tal exigência.”

A selvageria em São Luís desenrola-se com mais ousadia no desrespeito à Lei do Silêncio, em especial durante o Carnaval, como agora. A temporada de caça ao sossego público, portanto, está aberta, devendo entender-se o desprezo pelas leis como onipresente na cidade. As violações são de todo tipo e por todo lado: estacionamento em locais proibidos, excesso de velocidade, tráfego na contramão, bloqueio de entradas de garagem, etc. Menciono infrações de trânsito como exemplo da amplitude da falta de respeito à legislação. A desobediência à do silêncio é ainda pior.

Na rua das Gardênias, no meu bairro, funciona um bar que tem perturbado a vida dos moradores da via. Um destes, Moacir Moraes, é autor de uma ação judicial, apelando ao Judiciário pelo direito, inscrito na Constituição, a um meio ambiente saudável, livre de poluição sonora, como essa do estabelecimento, conforme laudos que evidenciam emissão de som muito acima do limite legal, de acordo com medições recentes. Imaginem um som emitido à distância de tão só 10 metros de seu quarto de dormir, durante horas, de noite, durante vários dias da semana, o ano todo, como ocorre neste episódio. Há inúmeros estudos com sólidas evidências sobre os males, tanto físicos quanto mentais, incidentes sobre pessoas submetidas a estresse dessa natureza.

No meio dessa confusão toda, ocorreu um fato curioso. Um dos proprietários do bar, num surto de revolta contra o autor da ação, queixou-se, no grupo de whatsapp dos moradores, de suposta perseguição movida contra ele por Moacir. O improvável perseguido afirmou pagar seus impostos (não duvido), gerar riquezas e empregos, possuir licenças, ter valorizado os imóveis e melhorado segurança da área, mas sentir-se cansado e perseguido. Moacir lembrou o óbvio: “Se quem perturba está cansado, imagine quem é perturbado...”

Pagar impostos é obrigação, não virtude,. Se a empresa não paga agora, paga depois muito mais. Quanto a gerar empregos e riquezas, os investimentos no negócio não tiveram como finalidade a geração de nada, a não ser, claro, de lucro. Afinal, esse é o legítimo fim de toda empresa. Se não, ela se tornaria uma entidade filantrópica, antes mesmo de falir; possuir licenças é pressuposto de toda atividade econômica, a menos que o proprietário deseje trabalhar na clandestinidade. Não é este o caso, contudo. Surpreende-me a alegação de valorização de imóveis. Não dos imóveis daqueles atingidos pela poluição, com certeza! Esses têm os seus desvalorizados. A alegada perseguição não parece ter os pés na realidade. Nem pelo menos um pé.

Termino com Rubião, do “Quincas Borba”, de Machado de Assis. O personagem disse no final do romance: “O melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão.” É isso, fácil é achar que não há poluição sonora, quando quem a sofre é a outra pessoa. Ainda Machado: “Sofre-se com paciência a cólica alheia”. Está nas “Memórias Póstumas e Brás Cubas”.

Lino Raposo Moreira

PhD, economista, membro da Academia Maranhense de Letras

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.