Direitos

Afegãs temem perder conquistas com a volta do Talibã à política

Ex-deputada Shinkai Karokhail, autora da lei contra violência doméstica, enfrenta ameaças de morte; acordo de paz que vinha sendo negociado entre os EUA e o Talibã prometia trazer questões importantes sobre os direitos das mulheres

Atualizada em 11/10/2022 às 12h21
Mulheres vistas em Cabul, Afeganistão
Mulheres vistas em Cabul, Afeganistão (Divulgação)

CABUL - Com a perspectiva de o Talibã voltar ao cenário político do Afeganistão em breve, as mulheres temem perder os direitos conquistados desde 2001, quando o grupo foi tirado do poder. Os extremistas proibiam as afegãs de estudar, exigiam o uso de burca e as tratavam como propriedade dos homens.

Chegar a Shinkai Karokhail, uma ex-deputada do Parlamento afegão e autora de uma lei que pune homens que agridem mulheres nesse país profundamente patriarcal, não é tarefa fácil. Sua casa fica na chamada Área Verde de Cabul, um conjunto de bairros e ruas que contam com os mais elevados protocolos de segurança em uma cidade demarcada cotidianamente pelo terror. Só alguns carros e motoristas têm autorização para cruzar pontos de controle fortemente armados com soldados e blindados. Só entra aqui quem tem autorização prévia.

A Casa de Shinkai fica em uma rua sem saída, com barreiras anti bomba colocadas estrategicamente para forçar os carros a reduzir a velocidade em um obrigatório zigue-zague. Na frente dos portões de aço e dos muros altos, soldados armados com rifles AK-47 montam guarda, 24 horas, sete dias por semana. Por rádio, informam que os visitantes chegaram.

Minutos depois, outros guardas abrem uma portinhola que dá acesso a um cômodo monitorado por câmeras, antes de chegar ao quintal. Ali revistam tudo e todos. Exigem que cada câmera fotográfica seja disparada para provar que não está recheada de explosivo.

"Vivo assim, quase como uma prisioneira. Sei que eles jamais perderiam a chance de me matar", conta ela.

Desde que o Talibã voltou a ganhar força nesta guerra que já dura quase duas décadas, mulheres como Shinkai têm ficado cada vez mais preocupadas. E não só com o seu futuro pessoal. Temem, com uma boa dose de razão, que as duras conquistas na luta pela equidade de gênero sejam perdidas com o retorno do grupo extremista ao cenário político afegão.

" Tenho clara na minha memória como era a vida das mulheres no tempo em que o Talibã estava no poder. Ainda me lembro da obrigatoriedade da burca, da impossibilidade de estudar, das leis que permitiam que os homens tratassem as mulheres como sua propriedade. Nem eu nem as mulheres do Afeganistão queremos isso de volta, e eles sabem, nós vamos lutar para que não volte", afirma.

Negociação interrompida

O acordo de paz que vinha sendo negociado entre os EUA e o Talibã ao longo do último ano prometia trazer questões importantes sobre os direitos das mulheres no país. Mas, com a suspensão abrupta das negociações por parte do presidente Donald Trump em setembro, pouco antes das eleições presidenciais, nenhum detalhe concreto sobre quais pontos a respeito dos direitos femininos o Talibã havia aceitado ficou claro. As negociações foram retomadas no início deste mês.

Em meio à crescente violência com ataques terroristas quase diários e as indefinições sobre quem será o novo presidente afegão, a questão ficou em segundo plano.

" Ninguém sabe o que eles pensam ou como e se irão aceitar as conquistas que tivemos nesses quase 20 anos, tudo é uma incógnita", frisa a ativista Farahnaz Forotan, que lançou uma campanha para incentivar as afegãs a lutarem para manter as vitórias.

Nos anos em que o grupo fundamentalista islâmico esteve no poder, entre 1996 e 2001, uma série de medidas contra os direitos das mulheres foi imposta em todo o país. Meninas foram proibidas de estudar, nenhuma mulher podia sair às ruas sem acompanhante, a burca se tornou mandatória e o trabalho fora de casa era proibido para as afegãs. Penas duras como o apedrejamento para crimes como adultério foram implantadas, e os casamentos com pré-adolescentes se tornaram legais.

"O Talibã seguiu uma mistura de regras estabelecidas pelo Corão assim como costumes tradicionais. É errado atribuir só a eles injustiças com as mulheres", diz Abdul Hakeem Mujahid, integrante do conselho executivo do Alto Comitê para Discussões de Paz, um organismo criado pelo governo afegão na tentativa de integrar o Talibã ao sistema político do país.

Resistência a mudanças

Segundo ele, a maior parte das afegãs concorda com boa parte das regras do Talibã.

"As mulheres que reclamam, as que querem uma liberdade exarcerbada fazem parte de um grupo pequeno, de no máximo três mil, que busca ocidentalizar a cultura afegã", argumenta ele.

Mujahid conhece bem o Talibã. Ele fez parte do grupo nos anos 90 e foi o representante do Afeganistão na ONU até o atentado contra as Torres Gêmeas no dia 11 de setembro de 2001, quando o país abrigava o terrorista Osama bin Laden, responsável pelo ataque. Mujahid retornou ao país em 2005 e se reintegrou ao sistema político. Garante não ter mais nenhuma ligação formal com o grupo.

"Não defendo o Talibã, quero deixar isso muito claro, ma sé preciso esclarecer que as liberdades que muitas dessas mulheres querem hoje são algo estranho à cultura afegã. Por que uma mulher precisa trabalhar se seu marido pode prover para ela? Isso gera problemas. Por que uma mulher casada precisa se expor a outros homens? Isso gera problemas, é preciso bom senso", afirma.

Mujahid atribui a luta por mais direitos femininos no país à elite econômica urbana que tem pouca ligação histórica com o Afeganistão: "Todos esses têm dois passaportes, suas vidas não são aqui, não são com o povo".

Sem acesso à educação

O Afeganistão é um dos países mais conservadores do mundo, com uma cultura fortemente patriarcal e uma interpretação das escrituras sagradas islâmicas extremamente literal. Mesmo hoje, quase 20 anos após a queda do Talibã, é comum ver mulheres usando burca mesmo nas áreas mais cosmopolitas de Cabul. É raro encontrá-las trabalhando nas regiões mais afastadas do centro econômico e cultural do país, e ainda é tradição não permitir que as mulheres tenham acesso à educação. Mesmo na classe média de Cabul, é comum encontrar famílias que permitem que as mulheres tenham acesso apenas ao Ensino Médio. O analfabetismo entre as afegãs ainda é um dos maiores do mundo e são raríssimas as mulheres que chegam à universidade.

Ainda assim, é uma situação muito melhor que aquela dos tempos em que o Talibã estava no poder. Hoje, o governo americano estima que 3,5 milhões de meninas afegãs estejam estudando. Outras 100 mil mulheres chegaram ao ensino superior. Rahiba Rahimi, uma jovem de 26 anos que pouco conheceu os tempos do Talibã, é uma delas. Mais do que uma universitária, Rahimi é a primeira afegã a se tornar uma estilista em tempo integral. Sua marca, a Laman, já participou de desfiles em Milão e em outros centros da moda mundial.

"Recebo ameaças constantemente, as mensagens de ódio são permanentes. Há muita dificuldade nessa sociedade em aceitar que uma mulher pode fazer sucesso sem ter um homem por trás dela", diz Rahimi, que perdeu ao menos 20 colegas em um atentado do Talibã contra sua universidade, em Cabul.

Ela, como tantas mulheres no país, também está preocupada. E, ao contrário de muitas afegãs e afegãos, não acha justo que o Talibã retorne ao poder depois de tantos anos de guerra:

"Sinto que, na verdade, nós estamos nos rendendo ao terror. Esse é o meu sentimento. Após tudo o que eles fizeram, após tanto sofrimento, por que nós temos que aceitar tudo isso? Será que eles vão nos aceitar?"

Essa é uma pergunta ainda sem resposta. Certo, apenas, é que o retorno do Talibã ao cenário político afegão e, por consequência, ao poder, é algo inexorável. Trata-se apenas de uma questão de tempo.

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