Tradição cultural do Maranhão

"Guardiãs da memória": as rezadeiras e sua "força sobrenatural" e as caixeiras do Divino

As bençãos ao menino Jesus e a condução de uma das festas mais populares da cultura popular maranhense são representadas por duas figuras conhecidas; elas são representações de comunidades

Thiago Bastos / O Estado

- Atualizada em 11/10/2022 às 12h21

[e-s001]As bençãos ao menino Jesus e a deferência relatada em trechos bíblicos feitos pelos reis magos a quem veio para o mundo “nos salvar”, como defendem algumas religiões - ao contrário de algumas congregações evangélicas que não creem na presença específica de três reis magos na manjedoura - e a condução de uma das festas mais populares da cultura popular maranhense são representadas por duas figuras conhecidas da sociedade.

As rezadeiras e as caixeiras são, em sua maioria, representações de comunidades tradicionais e de famílias que, de uma a outra geração, repassam seus conhecimentos em especial para mulheres que, entre o cuidado da família e da casa, dedicam boa parte de suas vidas à crença na reza e no batuque da caixa.

Quanto às donas da arte da reza, de acordo com o trabalho “Rezadeiras: guardiãs da memória”, de Cláudia Santos da Silva, são consideradas “importantes personagens da cultura popular”. Sua referência a zeladoras da memória se deve ao simples fato de junção às camadas populares e consideração de seus papéis no registro de orações e da citação ao filho de Deus.

Em sua maioria, as rezadeiras são católicas e pertencem ao que é citado por historiadores e antropólogos em geral como “catolicismo popular”. Para estudiosos, é preciso cuidado para não confundir o papel das rezadeiras ao das benzedeiras. Enquanto as últimas focam diretamente nos conflitos familiares e problemas, como mau-olhado, febre, tristeza e outros, no caso das rezas, o porto seguro é a homenagem a Jesus Cristo, Nossa Senhora e santos. Em geral, as rezadeiras pregam costumes e ritos. E o grande formato desta homenagem é a ladainha, ou súplica.

A súplica em latim: a ladainha
De origem grega, a palavra “ladainha” quer dizer súplica e - desde os primeiros séculos de formação das igrejas e comunidade religiosa - são utilizadas para “indicar as súplicas rezadas em conjunto pelos fiéis”.

Dentre uma das mais conhecidas, está a “ladainha lauretana”, alusiva à mãe de Jesus. Apesar do elemento central ser Nossa Senhora, os primeiros versos da oração são para Jesus, como na tradução “Senhor, tende piedade de nós! Jesus Cristo, ouvi-nos!”. São invocações à maternidade de Nossa Senhora, lembranças de sua virgindade e citações à misericórdia divina.

Um dos diferenciais deste tipo de manifestação é o uso popular dos versos a partir do latim. Em São Luís, é comum ver cidadãos expressando suas crenças no ser divino a partir da língua. Em sua maioria, são pessoas sem instrução escolar específica e que aprenderam o ofício a partir da observação.

As duas “Concitas” rezadeiras
Em plano bairro do Desterro, o mais tradicional da capital maranhense, há uma reunião anual e tradicional organizada por Concita Conceição Dutra, uma “jovem” moradora da comunidade de 61 anos, sendo todos eles vividos no local. Antes da organização da reza, que anualmente ocorre entre os dias 6 e 8 de janeiro, a dona da casa organiza todo o presépio e cuida dos detalhes mínimos. Desde a manjedoura aos acabamentos da figura principal, o menino Jesus, são cuidados de forma exemplar.

A tradição de rezar em volta de um presépio, para a rezadeira, começou a partir de uma promessa familiar. “Minha irmã já falecida era muito católica e ela me pediu que, todos os anos, fizesse uma reza em prol do menino Jesus. E é o que faço desde então”, disse.

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Para manter o costume, a dona Concita do Desterro conta com a xará, dona Concita do Sacavém. Elas se reúnem, chamam novas fiéis e organizam toda a reza. “Uma traz um material para decoração, outra pessoa traz o lanche. Enfim, todos os anos a gente faz assim”, disse Concita Mendes, a Concita moradora do Sacavém.

“Queimando, queimando as nossas palhinhas!”
Geralmente a reza dura não mais do que meia hora. Em alguns casos, pode ultrapassar uma hora de duração. Independente do horário, após todo o rito (que termina com as bençãos a Jesus) dois são os atos mais conhecidos. O primeiro deles, em especial no Dia dos Reis (em alusão aos reis magos da Bíblia), é feita a chamada “queimação das palhinhas”, hábito antigo de famílias ludovicenses. Os ramos usados para representar, segundo o costume tradicional, os reis magos próximos ao filho de Deus são queimados em brasa.

E para este ato, é normalmente entoado uma cantiga cujo trecho “Queimando, queimando as nossas palhinhas!” é o mais comum de todos. Em locais de São Luís, como o Convento das Mercês, o costume de queimação das palhinhas é uma obrigatoriedade. Em 2014, O Estado acompanhou uma destas atividades, que contou à época com a presença do ex-presidente da República, José Sarney.

A rezadeira de mais de três décadas
Dona Concita Mendes, moradora do Sacavém, participa de ladainhas o ano inteiro. A “agenda” se intensifica nos meses de dezembro e janeiro, no entanto, segundo ela, em algumas comunidades, é comum a reza em outros períodos do ano. “Já fiz tanta reza este ano que até perdi as contas. As pessoas querem reforçar os laços perdidos de fé ao longo do tempo e nos chamam para isso. Para mim, uma grande alegria”, disse.

Uma das rezas mais conhecidas está situada na Coheb, bairro próximo ao Sacavém. Na casa de dona Elza, antiga moradora do bairro, é tradicional ver amigos e amigas em volta do presépio e reunidos em um cômodo da casa em homenagem a Santa Luzia. “Elza é uma amiga muito querida, uma mulher fervorosa em sua crença divina e todos os anos nos reunimos com ela para agradecer pelas bençãos e pedir força e luz dali em diante”, afirmou Concita Mendes.

SAIBA MAIS

A ladainha a Nossa Senhora foi aprovada oficialmente pelo papa Clemente VIII em 1601. Ao longo dos tempos, algumas invocações foram sendo acrescentadas pelos papas, como por exemplo: “Rainha concebida sem pecado” em 1854 e “Mãe do Bom Conselho”, em 1903.

[e-s001]As responsáveis pelo batuque do Divino: as caixeiras maranhenses

No batuque dos tambores, é gerado o ritmo de uma das festas religiosas mais conhecidas do nosso Estado. A Festa do Divino Espírito Santo, cuja mais notória é realizada na cidade de Alcântara (MA), exalta a fé de uma gente e dá protagonismo a uma das personagens da nossa cultura. As caixeiras do Divino, com seus instrumentos, são responsáveis por conduzir todos os rituais durante a festa. Normalmente realizadas nas casas de culto e terreiros de umbanda, a festa está associada ao surgimento da figura das caixeiras, a partir do início do século XVII, com a vinda em especial dos colonos portugueses para o Brasil.

A peculiaridade da Festa do Divino no Maranhão está representada pela figura das caixeiras. Em nenhum outro lugar do país, as mulheres com suas caixas ocupam tanto destaque como por aqui. Normalmente, as caixeiras utilizam instrumentos confeccionados com pele de couro de cobra e são fundamentais em todas as etapas do festejo. Todo o ritual, de acordo com pesquisadores, se pauta em torno de um grupo de crianças, que constituem o império.

Com trajes nobres, os jovens são tratados com regalias durante a programação. Algumas destas crianças recebem os títulos de imperador e imperatriz. Logo abaixo deles, estão o mordomo e a mordoma-régia.

“Sem elas, não tem festa!”
Desde o toque e o ritmo dos cânticos à escolha do horário em que são distribuídas as refeições, tudo passa pela determinação e escolha das caixeiras. Para o antropólogo Sebastião Cardoso, que estuda a importância das caixeiras nas comunidades maranhenses, sem elas, não há festa. “Elas [caixeiras] representam toda a simbologia da festa. Desde as canções para cada ato da festa, como o levantamento do mastro por exemplo, a quando os membros da Corte e integrantes fazem as refeições, tudo passa por elas”, disse.

O pesquisador cita ainda outra peculiaridade. Na região dos Cocais, por exemplo, existem festas do Divino com a presença dos chamados Foliões da Divindade, ou seja, tocadores de caixas do sexo masculino. “É uma característica única da nossa gente, ou seja, essa diversidade na forma das manifestações”, expressou Sebastião Cardoso.

O antropólogo ressalta ainda que as cantigas e uso dos instrumentos como elementos incorporados à festa remonta a relação entre portugueses e escravos. “Quando os portugueses por aqui chegaram, alguns deles repassaram esse conhecimento e tradição portugueses às escravas que, por sua vez, com suas crenças nos elementos afro, incorporaram estes elementos a uma das festas mais importantes e conhecidas de nossa cultura”, ressaltou.

[e-s001]A caixeira centenária: mais de um século dedicada ao toque das caixas no MA

Em plena viela do bairro da Liberdade, um dos polos recebedores da comunidade da baixada maranhense, está sentada na porta de casa em pleno dia de semana uma das personagens mais simbólicas da tradição das caixeiras no Estado. Eugênia Rosa Ferreira, de 107 anos de idade, tem quase um século de vida dedicado exclusivamente à arte das caixas. A lucidez e a memória da aposentada surpreendem pelo detalhismo nos relatos das apresentações de grupos afro das décadas de 1950 e 1960 acompanhados por ela ainda quando jovem.

Tomando um suquinho na porta de casa, dona Eugênia lamenta, por exemplo, que as mais novas não tenham mais o interesse pela função de caixeira. “A gente tenta ensinar essas meninas, mas ninguém quer mais bater caixa”, disse. De vez em quando, ela, apesar das restrições físicas, ainda arrisca alguns batuques. “Moro perto do terreiro de Pai de Coxo e vez ou outra vou lá acompanhar as apresentações”, afirmou Eugênia Rosa.

Ela conta como se interessou pela arte das caixas. “Eu era menina velha, e ia com a minha avó num terreiro aqui mesmo no bairro e ficava encantada com o som. Ela me ensinou e, desde então, não desaprendi mais. Vivi a minha vida inteira pelas caixas”, disse. Eugênia Rosa já participou da Festa do Divino em Alcântara, mas seu protagonismo veio mesmo na capital maranhense. Devido à idade, é considerada a caixeira mais velha e viva do nosso Estado. “Pretendo ainda ir longe, na esperança que as próximas gerações gostem mais do toque das caixas”, disse dona Eugênia.

SAIBA MAIS

TRECHO DA LADAINHA DE NOSSA SENHORA

Senhor, tende piedade de nós
Cristo, tende piedade de nós
Senhor, tende piedade de nós
Cristo, ouvi-nos
Cristo, atendei-nos
Deus Pai do céu, tende piedade de nós
Deus Filho Redentor do mundo, tende piedade de nós
Deus Espírito Santo, tende piedade de nós
Santíssima Trindade, que sois um só Deus, tende piedade de nós

QUEIMAÇÃO DE PALHINHAS

Queimemos, queimemos as nossas palhinhas com cravos e rosas, queimemos a lapinha!
Adeus meu menino, adeus meu amor, até para o ano se nós vivo for (2X)
Queimemos os cravos, queimemos as rosas
Queimemos murtinhas, murtinhas cheirosas!
Adeus meu menino Maria e José, até para o ano se Deus quiser!
Adeus meu menino José e Maria, até para o ano neste mesmo dia!
Adeus meu menino até outra vez, até para o ano no Dia dos Reis!
Viva o padrinho, viva a madrinha, viva o menino na sua lapinha!
Chegai os padrinhos do ano vindouro, recebei o menino que é nosso tesouro
Com que saudades nos retiramos de junto daqueles a quem tanto amamos!
Adeus meu menino nascido em Belém
Deus nos abençoe para sempre!
Amém!

LADAINHA DE NOSSA SENHORA (EM LATIM) – TRECHOS

Kirie Eleison, Kirie
Eleison, Crhistie Eleison
Crhstie Audi Nobis
Kirie Eleison, Kirie Eleison,
Crhistie Eleison, Crhistie
Exaudi Nos!
Paterdi Coelis Deus Misere
Nobis, Fili Redemptor Mundi
Deus Misere Nobis, Spiritus
Sancte Deus Misere Nobis,
Sancta Trinitas Unus Deus
Miserere Nobis!
Sancta Maria, Sancta Dei
Genitrix Sanca Virgo
Virginus Ora Pro Nobis!
Mater Crhstie, Mater Divinae –
Gratiae, Mater Purissima Ora

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