Posse

Na Argentina, Fernández assume e prega '' contrato social solidário''

Peronista afirma que relação com Brasil ''vai além de qualquer conjuntura'', critica receita do FMI e lança plano emergencial contra a fome: ''Vamos começar pelos últimos para chegar a todos''; ele disse que Mercosul continuará sendo prioridade

Atualizada em 11/10/2022 às 12h21
Fernández recebe a faixa de Macri, em cerimônia no Congresso da Argentina
Fernández recebe a faixa de Macri, em cerimônia no Congresso da Argentina (AFP)

BUENOS AIRES - Ao tomar posse ontem,10, como presidente da Argentina, o peronista Alberto Fernández prometeu governar em "respeito aos dissensos", pregou a "unidade de toda a Argentina, em prol da construção de um novo contrato social fraterno e solidário", afirmou que sua prioridade inicial será o combate à fome e disse que o país precisa crescer para poder pagar seus credores externos, incluindo o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Ao lado da vice-presidente também empossada, Cristina Kirchner, ele afirmou que seu antecessor, Mauricio Macri , termina seu mandato “deixando um país em situação de virtual default (calote)" (da dívida externa pública) e disse que sente estar “passando pelo mesmo labirinto” que atravessou ao lado do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007), de quem foi chefe de Gabinete e que também assumiu o país depois de uma moratória da dívida.

As questões da dívida, da crise social e da recessão econômica ocuparam um espaço central no discurso do novo presidente. Segundo Fernández, seu governo recebe um país “frágil, prostrado e ferido”, que não tem condições de saldar seus compromissos externos.

" Para poder pagar, é preciso crescer primeiro. Vamos construir uma relação construtiva com o FMI. O país quer pagar, mas carece de capacidade. Os credores assumiram o risco de investir num modelo que fracassou no mundo várias vezes", disse Fernández, referindo-se ao crescimento das dívidas interna e externa durante o governo de Macri e à queda do PIB argentino neste ano, prevista para chegar a 3%.

Mercosul como prioridade

Fernández afirmou ainda que o Mercosul continuará sendo prioridade da Argentina, e que a relação com o Brasil "vai além de qualquer conjuntura" e das "diferenças entre os que governam". Ele defendeu a relação com um dos principais sócios comerciais da Argentina para “construir uma agenda ambiciosa, inovadora e criativa, respaldada na irmandade histórica de nossos povos".

"A Argentina quer integrar-se, mas com inteligência, protegendo a produção nacional. Queremos relações maduras com todos os países. A América Latina é nosso lugar comum. Queremos reforçar o Mercosul e a integração regional", afirmou o novo presidente.

Entre os convidados estrangeiros que ouviam o discurso estava o vice-presidente Hamilton Mourão, enviado por decisão de última hora do governo Jair Bolsonaro na segunda-feira,9. Para o novo presidente da Argentina, os dois países têm “um futuro de progressos compartilhados”.

Fernández começou seu discurso lembrando que neste dia, há 36 anos, tomou posse o presidente Raúl Alfonsín, pondo fim "à mais cruel das ditaduras" vivida pelo país.

"Desde então, sempre preservamos, na institucionalidade, o funcionamento da República. As fraquezas da democracia só se resolvem com mais democracia".

Ele pregou a "convivência e respeito aos dissensos".

" Venho convocar a unidade de toda a Argentina, em prol da construção de um novo contrato social fraterno e solidário", disse. "Os grandes muros que temos que superar para pôr a Argentina de pé são os do rancor e ódio, da fome e do desperdício de nossas energias produtivas. Todos e todas devemos ser capazes de conviver nas diferenças. Quero ser o presidente capaz de traduzir a melhor faceta de todos, e ser capaz de corrigir meus erros em vez de ficar no pedestal dos iluminados.

Referindo-se à taxa de pobreza, que neste ano chegou a 40% da população, ele anunciou que a primeira reunião do seu Ministério será dedicada a um "plano integral contra a fome".

"Devemos criar uma ética das prioridades e das emergências. Isso supõe começar pelos últimos para poder chegar a todos e pôr um freio na catástrofe social. Sem pão não há democracia nem liberdade.

Reforma da Justiça

Antes do discurso, Fernández recebeu a faixa de Mauricio Macri. Os dois se abraçaram amistosamente, e o presidente que deixa o cargo também foi aplaudido, mas ouviu dos presentes, em alta voz, o hino peronista. Além dos novos ministros, incluindo o da economia, Martín Guzmán, discípulo do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz, teve lugar de destaque na posse o filho de Fernández, Estanislao, que já foi atacado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, por fazer performances como drag queen.

Um dos momentos mais aplaudidos do discurso de Fernández foi quando ele falou sobre seu projeto de reforma da Justiça e de intervenção na Agência Federal de Inteligência (AFI), revogando um decreto de Macri que tornou secreto o orçamento da entidade.

" Esses fundos serão usados para financiar o plano contra a fome", anunciou.

Fernández insistiu na teoria do kirchnerismo de perseguição judicial aos dirigentes desse campo político e enfatizou que “nunca mais" (lema adotado após a redemocratização do país, em 1983) haverá "uma Justiça contaminada por serviços de inteligência, por operadores judiciais, procedimentos obscuros e linchamentos midiáticos”.

" Sem Justiça independente não há República nem democracia. Vimos a deterioração judicial, perseguições induzidas pelos que governam e silenciadas pela imprensa. Nunca mais a uma Justiça que decide e persegue pelos ventos políticos do poder do momento. Usada para saldar divergências politicas e eliminar o adversário do momento", enfatizou Fernández.

Cristina enfrenta nove processos judiciais por suposta corrupção, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro, entre outros delitos.

" Não podem mais dizer que alguém é culpado sem uma condenação judicial firme", frisou o presidente, que também defendeu uma imprensa “independente do poder”.

Fernández questionou os recursos usados por seu antecessor em publicidade oficial e disse que esse orçamento será realocado e usado para melhorar áreas como educação.

O novo presidente, que já defendeu publicamente a legalização do aborto, disse que dará prioridade às demandas das mulheres.

"Vamos ligar os motores da economia. A estrada é estreita, complexa. Não há lugar para dogmas mágicos. Vai levar tempo", concluiu Fernández, o homem que comandou a campanha de Néstor Kirchner em 2003 e a partir desta terça governará a Argentina ao lado de sua viúva e sucessora.

'Default técnico'

Em entrevista pouco antes da posse, Fernández disse que o rumo do país mudará, mas com cautela.

"O cenário que temos é muito feio de onde quer que a gente olhe. Quatro de cada dez argentinos são pobres", disse. "O problema é grande, e temos que ir devagar. O que temos que saber é que o rumo do país vai mudar. O ônibus ia a 200 quilômetros por hora para o precipício, freou e começou a girar para outra direção".

Ele comentou o pedido do presidente Mauricio Macri, que lhe passou o cargo, de que o FMI adiasse os prazos de pagamento das parcelas do empréstimo de US$ 50 bilhões concedido à Argentina em 2018, e disse confiar em que haverá avanços nas negociações com o Fundo, com o qual já está conversando desde sua eleição, em 27 de outubro.

"Apesar de Macri ter chamado de reperfilamento, as consultorias internacionais chamam de default técnico", observou.

A Argentina está isolada dos mercados, sua taxa de risco é uma das mais altas do mundo e a escassez de dólares é um problema grave. No governo Macri, a dívida externa passou de US$ 180 bilhões, 28% do PIB, para US$ 290 bilhões, 60% do PIB. A dívida pública passou de 53% do PIB para 76%. A inflação prevista para este ano é de 54%. Os economistas estimam que as reservas líquidas do Banco Central seriam inferiores a US$ 10 bilhões, enquanto os pagamentos de dívida previstos para 2020 superam US$ 20 bilhões.

' Bônus seletivo'

O presidente não descartou um "bônus seletivo" para os setores mais afetados pelo aumento da pobreza, que chegou a 40% neste ano, nem um aumento dos impostos sobre as exportações de commodities agrícolas.

"Vou trabalhar incansavelmente para que haja menos pobres, para que todos tenham trabalho e para que a fome desapareça da Argentina".

Ele também disse que iria acabar com a polarização entre peronistas e antiperonistas, e que no seu governo "não haverá perseguição nem vingança".

"Aos que têm medo de perseguição e vingança, não contem comigo para isso, passei por isso e não aceito esse tipo de lógica".

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