Entrevista - Heitor Dhalia

Os bastidores da criação artística

Cineasta esteve em São Luís para lançar "Anna", um filme sobre relações abusivas e produção teatral

Bruna Castelo Branco/Editora do Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22
Heitor Dhalia esteve em São Luís
Heitor Dhalia esteve em São Luís (Heitor Dhalia)

SÃO LUÍS- Com uma intensa agenda de produções para 2020 e uma carreira marcada por filmes bem-sucedidos na história do cinema, entre eles “Nina” (2004), “O Cheiro do Ralo” (2006) e “À Deriva” (2009), o cineasta brasileiro Heitor Dhalia esteve em São Luís, na última sexta-feira, para participar do festival Maranhão na Tela, que exibiu o filme “Anna”, de sua autoria.

O drama aborda a complexa relação de Arthur (Boy Olmi), um diretor de teatro, e Anna (Bela Lindecker), durante a montagem de “Hamlet”, de Shakespeare. É desse encontro, entre atriz e diretor, que vem à tona uma eclosão de conflitos, que trazem com eles uma profunda discussão sobre o limite entre o desejo e a ética.

Com um elenco novo, oriundo do teatro, Dhalia revela, além de Boy Olmi e Bela Lindecker, atores e atrizes como Gabriela Carneiro Cunha, Tulio Starling, Nash Laila e Lucas Andrade e, também, as maranhenses Tássia Dur e Aurea Maranhão. A obra, prevista para entrar em circuito nacional no primeiro trimestre de 2020, foi rodada em São Paulo e teve o Sesc Pompéia e o MASP como locações.

Durante a breve passagem pela capital maranhense, Dhalia conversou com O Estado sobre o novo filme, projetos para 2020, inclusive o início de leitura do novo livro de Lourenço Mutarelli, simbolizando o retorno da parceria que originou “O Cheiro do Ralo”. Além disso, ele analisou o cenário para as artes no país.

Em “Anna”, queria que você falasse um pouco dos dilemas desses personagens
Esse é um filme que eu escrevi há muito tempo com a Nara Chaib [Mendes] e demorou a ser financiado. A gente queria fazer um filme sobre esses processos criativos verticais e essas relações no campo do teatro especificamente, relações complexas de criação e que se tornam abusivas em um certo ponto. É um relacionamento de um diretor de teatro mais velho com uma jovem atriz e a gente queria investigar esse campo. Na época, não tinha tido a “Primavera Feminista”, não tinha tido nenhum desses movimentos que aconteceram depois. Era um filme sobre teatro, relacionamento, relações de poder e desejo, o limite entre a ética e o desejo. Como o filme demorou muito a ser feito, o mundo se transformou e várias questões foram colocadas e o filme foi ganhando uma atualidade vertiginosa e foi muito complexo para o processo. O mundo estava mudando muito rapidamente e a gente, no processo de criação, estava tentando responder às mudanças.

Como esses debates acerca de gênero interferiram nesse processo de criação?

Então, interferiram bastante e, ao mesmo tempo, você precisa incorporar o debate que está tendo com uma visão criativa, artística, que sobrevivesse ao tempo e que não fosse só uma discussão de Facebook ou de outras redes sociais, ou discussões maniqueístas. Independentemente de você apoiar ou não uma causa, existem debates que são maniqueístas, superficiais, repetições de jargões. Então, como tocar nesse assunto de uma maneira realmente séria? Foi esse o desafio do filme e a gente foi se desafiando no processo de criação, reescrita e, inclusive, na montagem.

Quanto tempo demorou para a finalização?

O filme inteiro eu não tenho essa data exata na cabeça, mas o processo de produção foi um ano e meio. Três semanas de filmagem, montei o filme com duas horas e vinte, cortei em 40 minutos quando ele já estava pronto. Então, foi um filme muito desafiador nesse sentido e eu acho que, talvez, seja meu filme mais maduro, muito complexo, bastante radical na linguagem, com um debate ético muito preciso, sem abrir concessões também à superficialidade, e esteticamente muito apurado. É um filme sobre criação, sobre teatro, sobre relações verticais. Ele transita nesse universo.

Você já conhecia o Maranhão na Tela?
É a primeira vez que eu venho no festival. Já vim ao Maranhão outras vezes, mas é a primeira no festival e tive uma recepção muito bacana. Esse filme tem duas atrizes do Maranhão, que é a Tássia Dur e a Aurea Maranhão, que fazem um trabalho incrível. São duas grandes atrizes que eu conheci em São Paulo e, então, também é uma honra e um prazer estar aqui também até como retribuição e homenagem a essas duas grandes atrizes que têm uma trajetória no Rio e São Paulo e são maravilhosas. É bacana mostrar também um pouco do trabalho delas. Eu também me encantei pelo Maranhão, tenho um fascínio pela cena do reggae. Eu acho que é uma das capitais culturais do Brasil com força e identidade.

O Brasil passa por um momento complicado para as artes e o cinema tem sido alvo de críticas do novo governo. Recentemente, a Ancine retirou os cartazes dos filmes nacionais de sua sede. Como é que você vê esse cenário?

Eu acho que é um cenário desafiador. É um momento complexo para o país. Você tem uma guerra de narrativas políticas que estão se confrontando e, às vezes, a cultura é um dos tabuleiros dessa guerra. Então, a gente tende a sofrer e ter apreensões com relação ao que vai acontecer. Eu acho que a maturidade do mercado de cultura e dessa indústria criativa é irreversível. Saiu a pesquisa do IBGE falando que a cultura corresponde a 3% do Produto Interno Bruto (PIB), 700 mil empregos gerados e é o quarto gasto das famílias brasileiras. Então, não tem como. É um jogo econômico mesmo. Eu acabei de fazer um filme em Nova York, uma cidade que tem duas coisas: mercado financeiro e economia criativa. Um dos sintomas de desenvolvimento de qualquer grande capital do mundo, Paris, Londres, Nova York, é ter uma indústria criativa forte. Ela impulsiona o design, a comunicação, os esportes, a moda, o audiovisual, os streamings, o cinema, a literatura e um dos índices de desenvolvimento do país é ter uma indústria criativa pulsante. Não há desenvolvimento econômico possível sem uma indústria criativa, sem uma indústria cultural pulsante. Uma coisa está coligada a outra. Por mais que eu sinta essas questões e me preocupe com isso, eu tenho uma confiança que esse índice de desenvolvimento humano e econômico do país não tem como retroagir. É uma indústria que ficou muito forte, muito grande, ela vai ser desafiada, ela vai passar por questões complexas, mas isso vai passar e a força desse setor que está ligado também a revolução digital, os streamings são isso. Não vejo como isso pode acontecer. Eu sei que é uma guerra narrativa, mas vai predominar o desejo das pessoas e as pessoas estão querendo consumir o audiovisual, consumir séries brasileiras, estrangeiras e a indústria do Brasil nos últimos anos tem uma série de leis, de fomento. Não há como retroagir uma indústria que se fortaleceu e, mesmo nos anos de crise, ela sempre cresceu. Apesar das dificuldades, eu tenho bastante otimismo no nosso setor, temos gente de muito talento e a gente vai continuar fazendo. Eu não tenho dúvida disso.

Além de “Anna”, quais os projetos que você tem para 2020?
Eu acabei de rodar um longa nos Estados Unidos, cheguei de viagem há uma semana. Eu filmei em Nova York e é um longa sobre imigração e faz um retrato dessa era Trump, desse debate contemporâneo de refugiados, de imigrantes. Rodei ano passado uma série na Globo Play, que trata da violência no Rio. Chama-se “Arcanjo Renegado”, que será lançada no começo do ano, eu fiz junto com o AfroReggae. Vou rodar a segunda temporada dessa série, devo rodar um outro filme sobre funk, super atual agora, um tema que fala de uma forma de expressão da periferia, super combatida pela Segurança Pública.

Vou rodar outra série no Rio sobre o narcotráfico também. A minha produtora também está lançando uma série da Vera Egito da HBO. Ela também vai rolar um longa sobre a Batalha dos Estudantes na Rua Maria Antônia, ocorrido em 1968, que, de alguma maneira, se atualiza no debate político atual. A gente está voltando para 1968 de alguma maneira e é muito importante. Ela demorou muitos anos para fazer esse filme e vai fazer na hora certa, vai trazer um debate político bem interessante para o país. Em abril, estamos rodando um longa do Guel Arraes, que estou produzindo. É uma adaptação distópica de Grandes Sertões Veredas, que também é no universo das favelas do Rio de Janeiro. É um ano cheio de projetos, outros longas menores ainda. Por isso que eu falei, para o ano que vem eu vejo muitas produções. O outro ano eu não sei, mas eu estou confiante. Eu acho que a gente vai seguir. Não tem como matar a cultura. Ela acaba se expressando de diversas maneiras, o que tem agora é um debate político sendo transposto para a área cultural, o que é normal porque a cultura é onde acontece o debate, ela traduz o tempo.

É normal que se trave esse campo de batalha também. Não existe cultura sem a contaminação com a vida, com a economia, com a política, com os costumes, as artes estão coligadas. As coisas vão seguir, eu sei que poderia ter cenários mais negativos, claro que o setor está sendo desafiado, mas a nossa narrativa vai prevalecer. Não existe economia sem cultura. Vou citar o Shakespeare aqui “a vida é feita de som e fúria”. Esse barulho é o barulho do mundo e vamos em frente. Eu particularmente não vou parar, vou continuar produzindo meus filmes.

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