Artigo

Amor no tempo dos bondes

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22

Obsoletos, símbolos do atraso, foram retirados da circulação com uma canetada, em meados da década de 1960. Tão simpáticos, combinavam com as ruas sinuosas e estreitas, ladeiras e o calçamento de paralelepípedos. A saída dos bondinhos das ruas de São Luís que nos parece uma agressão cultural, encaixou-se perfeitamente na mentalidade de uma época em que arranha-céus, ruas asfaltadas e ônibus fumacentos eram pensados como sinônimo de progresso. Agora, ser moderno é buscar a identidade, restaurar prédios e logradouros, valorizar o patrimônio.

Bondes identificam a nossa cidade, assim como as ladeiras, as pedras de cantaria, o bumba-meu-boi e os casarões de azulejos. Não é necessário ter vivido em outras décadas para constatar que eles faltam ao nosso contexto urbano.

Vale lembrá-los, São Pantaleão, Gonçalves Dias, Estrada de Ferro, Anil, Sacavém... Dois eram os preferidos para passeios: o Gonçalves Dias e o Estrada de Ferro. O primeiro vinha pela Rua do Sol, passava pelo Teatro Arthur Azevedo e Faculdade de Direito, parava na Farmácia Jesus (hoje, agência da Caixa) a encher-se de alunas do Santa Teresa. Enfeitado e cheio de alarido, subia a Rua Grande até chegar ao Canto da Viração, onde recebia outro grande número de colegiais, principalmente, os rapazes do Maristas, que se penduravam no estribo do bonde a lançar olhares às moças nos bancos, início do complexo processo de namoro de então. Mais adiante, na Praça Deodoro, entravam os alunos do Rosa Castro, Liceu, Ateneu, Escola Normal. Na minha visão pré-adolescente, a finalidade do bonde era uma só, propiciar namoros e flertes. Chegava finalmente à Praça Gonçalves Dias, onde o esperavam os alunos do Colégio São Luís. Defronte à Igreja dos Remédios, na Praça dos Amores, “virava a lança”, voltava o encosto dos bancos e retornava à Praça João Lisboa.

O Estrada de Ferro passava pela Beira-Mar. Era o bonde preferido para o passeio das crianças. Fechado, seguro e seu trajeto incluía a vista deslumbrante da Baía de São Marcos, barcos e navios ancorados. Seguia pela Praia Grande e ruas do centro histórico. Um recurso e tanto para distrair os pequenos, e bem mais barato que os shoppings de hoje, lugar para treino dos ferozes consumistas de amanhã. O São Pantaleão, bonde da minha meninice, atravessava o Mercado Central, subia o Largo Santiago, carregado de gente, gemendo, e rumava para as Cajazeiras, Rua do Norte, Rua do Passeio. É digno de registro dizer-se: em seus trilhos, moía-se o vidro especial de garrafa azul que, peneirado e misturado ao grude, fazia o famoso cerol pitisca, invencível nas lanceadas.

Dizem, não há mais espaço para tartarugas que tais. Para contrapor, lembro o bondinho de Sta.Tereza, no Rio, e os bondes emblemáticos das cidades americanas de São Francisco e Nova Orleans. Há bondes modernos em Zurich e Lisboa. Todos funcionam como transporte alternativo e não meros anacronismos.

Minha sugestão, bondes leves, modernos, com alta capacidade de passageiros, nos circuitos Deodoro, João Lisboa, Cemitério, Gonçalves Dias e Praça Maria Aragão, levando trabalhadores. Nesses circuitos, nenhum tráfego de ônibus e automóveis. A passagem estaria inclusa na dos ônibus, que permaneceriam em pontos de concentração. Outros bondes, harmônicos com o ambiente, sem pôr em perigo a estrutura dos casarões, rodariam na Praia Grande. Estes seriam uma réplica perfeita dos bondes antigos, exceto na energização, feita através dos trilhos. Partiriam do Aterro do Bacanga, com passagens gratuitas.

Os urbanistas de ocasião vão achar mil asneiras no que acabo de dizer. Não importa, estou certa que reflito o desejo de boa parte da população. As soluções e os detalhes práticos? Encontrem-nos os experts que serão pagos para isso.

Ceres Costa Fernandes

Mestra em Literatura e membro da Academia Maranhense de Letras


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