Mudanças

Chile mudará Constituição que foi herdada da ditadura

Após quatro semanas de protestos, acordo amplo entre direita e esquerda marca para abril plebiscito sobre formato da Constituinte; atual Carta não consagra direitos sociais; os mercados financeiros reagiram bem ao acordo, com aumento de 6,9% nas ações

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22
Membros de todos os partidos políticos chilenos exceto o PC participam do anúncio do acordo
Membros de todos os partidos políticos chilenos exceto o PC participam do anúncio do acordo (Reuters)

SANTIAGO — Quatro semanas depois da eclosão de protestos, congressistas do Chile concluíram um acordo que vai dar início ao processo para a redação de uma Constituição , uma das principais demandas das manifestações que há semanas tomam as ruas do país. O acerto só foi obtido às 2h30 da madrugada de sexta-feira, 15, após uma autêntica maratona de negociações entre representantes de quase todas as siglas do Parlamento, da direita à esquerda.

O principal ponto do acordo é um plebiscito, que será realizado em abril e terá algumas opções, começando pela pergunta principal: se a população quer ou não mudar a Carta Magna, redigida em 1980, durante a ditadura de Augusto Pinochet, e que não consagra direitos sociais à saúde, educação e previdência. Depois, o eleitor, caso concorde com a mudança, decidirá quem formará a Constituinte, se uma convenção, mista, com 50% de atuais congressistas e 50% de novos integrantes, ou se através de uma Assembleia Constituinte exclusiva a ser eleita.

O quórum para acordos constitucionais será de dois terços dos delegados constituintes. A Constituição deverá partir do zero, isto é, a Carta atual não será considerada como base. Houve controvérsia antes do acordo sobre este ponto — a União Democrática Independente, partido de direita que faz parte da coalizão do presidente Sebastián Piñera, queria que, em casos onde não houvesse a maioria de dois terços, os artigos constitucionais atuais fossem mantidos. A proposta acabou derrotada em favor da chamada "folha em branco". Ao fim do processo constituinte, a nova Constituição será submetida a um novo plebiscito.

Os mercados financeiros reagiram bem ao acordo, com um aumento de 6,9% nas ações da Bolsa local — que haviam caído 13% desde o início dos protestos — e o peso se valorizou, depois de queda recorde.

Negociação

Os partidos do governo (além da UDI, a Renovação Nacional, de Piñera, e o Evolução Política) a princípio eram contra a possibilidade de uma assembleia totalmente eleita. Eles aceitaram esta possibilidade na negociação em troca do alto quórum de dois terços, proporção que nenhuma coalizão política conseguiu ter no Parlamento desde 1990. Todos os partidos participaram do acordo, exceto o comunista (PCC), que, após uma reunião na terça-feira, se afastou das negociações, dizendo-se contrário ao quórum de dois terços. No entanto, a Frente Ampla, coalizão de esquerda formada em 2017 e que ficou em terceiro na eleição presidencial daquele ano, com 20% dos votos, participou do acordo. Os próprios dirigentes do PC, mais tarde, disseram que apoiarão o processo e participarão dele.

A eleição dos membros do órgão constituinte acontecerá em outubro de 2020, sob o sistema de sufrágio universal obrigatório — uma diferença em relação ao sistema eleitoral atual do Chile, onde o voto não é obrigatório e a participação eleitoral foi de menos de 50% nas duas últimas eleições nacionais.

A Assembleia Constituinte, que será desfeita após a aprovação da Carta, ficará reunida por até nove meses, prazo prorrogável uma só vez, por um período de três meses. Os quóruns exigidos para acordos não poderão ser alterados, e o mandato dos eleitos será exclusivamente relativo à nova Constituição. Pessoas que atualmente ocupam cargos públicos ou eleitorais, como deputados e ministros, deverão interromper suas funções para dedicar-se exclusivamente à Constituinte.

O primeiro dos 12 pontos do acordo fala na necessidade do restabelecimento da ordem pública, em meio a atos de violência registrados em todo o país e que já deixaram ao menos 20 mortos, e o respeito aos direitos humanos, em referência a denúncias de violações cometidas por agentes do Estado. “As partes que assinam este acordo garantem seu compromisso com a restauração da paz e da ordem pública no Chile e o pleno respeito pelos direitos humanos e pelas instituições democráticas em vigor”, diz o texto.

Amplo acordo

Ao anunciar o acordo, o presidente do Senado, Jaime Quintana, do Partido pela Democracia (PPD), de centro-esquerda, disse que a nova Constituição representa um amplo esforço de todas as partes do espectro político.

"Assumimos a responsabilidade com uma resposta da política com maiúscula, da boa política", afirmou. "Não era nada fácil. Este é um acordo que vai desde a Frente Ampla até a UDI. Se tivessem me perguntado 24 horas antes, eu diria que era impossível".

Quintana também disse que queria "homenagear aqueles que passaram momentos difíceis, vítimas de todas as partes. Houve pessoas que morreram, que foram afetadas em seus direitos essenciais".

O governo celebrou o acordo para a nova Constituição, chamado de Acordo pela Paz e uma Nova Constituição. Após o anúncio, a porta-voz do governo, Karla Rubilar, e os ministros do Interior, Gonzalo Blumel, e da secretaria de Governo, Felipe Ward, que formaram o comitê representando o governo durante a negociação, prometeram que a sociedade civil terá participação ativa na elaboração do novo marco constitucional.

"[A nova Constituição] é um primeiro passo fundamental para começar a construir nosso novo pacto social. Na nova casa de todos, a cidadania terá um papel de protagonismo, participará ativamente de nossa Carta fundamental ", disse Blumel. "Foram tempos difíceis, de sofrimento, mas também de esperança. Aprendemos e concordamos que este acordo nos permitirá encontrar e criar um país melhor, mais inclusivo".

Ward, por sua vez, disse que o governo demonstrou boa vontade política ao aceitar mudar a Constituição.

"Provavelmente teria sido mais fácil optar pela força. O presidente decidiu optar pela paz. E provavelmente era esta a decisão que queria a sociedade", disse.

A popularidade de Piñera derreteu desde o começo dos protestos, chegando a uma baixa histórica de uma aprovação de 10%, sobretudo depois que ele decretou estado de emergência, em 19 de outubro. Isso ajuda a explicar a mudança de ideia do presidente, que a princípio era contrário a uma reforma constitucional e cujo partido barrou uma iniciativa nessa linha apresentada pela ex-presidente Michelle Bachelet.

O plano incluía propostas como a inviolabilidade dos direitos humanos, a consagração do direito à saúde e à educação, e a igualdade salarial para homens e mulheres. Contudo, após o acirramento dos protestos, Piñera cedeu, aceitando a ideia de uma nova Carta, porém ainda contrário a uma Assembleia Constituinte. Seus opositores, por sua vez, exigiam participação popular ampla, que dizem que dará legitimidade ao novo texto.

Apaziguar as ruas

A atual carta recebeu dezenas de emendas desde que foi redigida, em 1980, sob a ditadura. No atual documento, áreas como educação, saúde e Previdência ficam sob encargo do mercado e não do Estado, ponto de severas críticas na sociedade local.

Uma nova Constituição, segundo a socióloga política Sthephanie Alenda, da Universidade Andrés Bello, é “imprescindível” para reduzir as tensões no país. Ao longo dos protestos, ela diz, se instaurou um consenso na população de que o país precisa de uma nova Carta. Pesquisas mostram que mais de 80% da população apoiam a mudança constitucional.

"Não penso que a mudança será mecânica ou automática, mas um acordo deve ter o efeito de diminuir os protestos", disse ela, destacando contudo que os episódios de violência, com saques e ataques a instalações das forças de segurança segue “outra lógica”, contra o Estado e que esta é imprevisível.

Segundo um balanço oficial, 70% dos mais de 13 mil detidos por saques e violência durante os protestos tinham antecedentes criminais. As manifestações tiveram como motivação inicial um aumento da passagem do metrô de Santiago, e evoluíram para demandas relacionadas ao custo da educação e da saúde, que no Chile são providas em boa parte pelo setor privado, e às baixas aposentadorias — na ditadura, foi instituído um sistema de capitalização, pelo qual cada trabalhador tem que poupar individualmente para se aposentar.

Fundamental

Segundo Gabriel Negretto, cientista político da Universidade Católica, uma nova Constituição é fundamental para apaziguar as ruas, mas mesmo assim há demandas imediatas que não irão esperar o processo constituinte.

"Oferecer o caminho de uma nova Constituição em parte deve servir para distender um pouco os ânimos, aplacar um pouco as críticas. Mas há exigências que se acumulam e que não vão esperar. Sem serem excludentes da resposta constitucional, são mais imediatas", ele afirma.

Entre estas demandas imediatas citadas pelo pesquisador estão violações de direitos humanos por parte das forças da ordem — ao menos 26 pessoas perderam a visão em um olho durante os protestos, atingidas por balas de borracha — e uma agenda de reformas sociais.

Em caso de Assembleia Constituinte, diz o pesquisador, o momento é muito favorável à esquerda, que está dividida. Embora a Coalizão de Partidos pela Democracia (Concertación), de Michelle Bachelet, não viva um momento particularmente favorável, ela deve crescer. Quem deve obter resultados particularmente favoráveis, segundo o analista, é a Frente Ampla.

"Há muitos partidos que querem uma Assembleia Constituinte totalmente eleita, porque é claro que o partido do governo irá perder a eleição. O governo é reativo a uma Constituinte totalmente eleita porque está em situação política muito desfavorável".

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