Brasil

Registros de violência sexual aumentam 53% em quatro anos

Profissionais que atuam no atendimento a vítimas de violência sexual falam sobre o sofrimento dessas mulheres e a dificuldade delas em conseguir ajuda; a pesquisa ainda aponta que valores morais estão presentes na hora de passar as informações

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22
A violência sexual é cercada pela discriminação e o preconceito, conforme levantamento
A violência sexual é cercada pela discriminação e o preconceito, conforme levantamento (Divulgação)

BRASÍLIA - O relatório ‘Breve Panorama sobre Aborto Legal e Transparência no Brasil’, produzido pela organização sem fins lucrativos Artigo 19 no ano passado, apontou que, dentre os órgãos estaduais de saúde das 27 unidades federativas brasileiras, 17 não possuem páginas na internet dedicadas à saúde da mulher.

A pesquisa checou sites de serviços especializados e acompanhou 162 pedidos de informação. Em alguns estados, como no Tocantins, não foi encontrada qualquer menção a políticas públicas voltadas para a saúde da mulher fora do contexto da maternidade.

Também foi constatado que 20 estados não possuem páginas voltadas à saúde de mulheres negras, indígenas ou transgênero.

Outro relatório produzido pela Artigo, ‘Acesso à Informação e Aborto Legal’, revela que nenhum site estadual possui dados atualizados sobre saúde sexual, reprodutiva ou aborto. A publicação é deste ano.

A equipe da Artigo 19 se apresentou como pesquisadora e paciente. Dos 176 hospitais que teoricamente realizam abortos legais no Brasil, a paciente conseguiu falar com 140, enquanto a pesquisadora com 22. Apenas 76 confirmaram realizar o aborto legal, permitido em casos de estupro até a 22ª semana.

A pesquisa ainda aponta que valores morais estão presentes na hora de passar as informações. Frases como “aborto é crime e aqui não defendemos direitos humanos para bandido” e questionamentos como “você conhece o autor da violência? ” foram ouvidas.

" Muro invisível"

Para o médico especialista em ginecologia e obstetrícia, militante para a Consolidação dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, integrante da Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção da Gravidez prevista em Lei, e coordenador da Rede Médica Pelo Direito de Decidir, Cristião Rosas, mulheres e meninas precisam passar por um “muro invisível”.

“As mulheres não procuram os serviços porque eles não estão expostos. Ás vezes, existe um serviço perto de casa, mas elas não sabem e não têm como saber”.

Ele ressalta que muitas mulheres vítimas de violência sexual são vulneráveis em diversos aspectos e precisam conviver sob a ameaça do estuprador. “A violência sexual acontece em relacionamentos, principalmente dentro do casamento. Muitas demoram para perceber, porque ainda se é cultivada a ideia de que elas são obrigadas a ter relações com seus maridos, que faz parte do casamento”.

A violência sexual é cercada pela discriminação e o preconceito. Nas delegacias, as mulheres costumam ser revitimizadas. Elas ouvem perguntas como ‘O que você estava fazendo? Que roupas estava usando?’

Dados do relatório ‘Estupro no Brasil, uma radiografia segundo dados da Saúde’, feito pelo Ipea em 2014, mostram que 9,3% dos abusos sexuais sofridos por mulheres adultas são praticados pelo cônjuge, 4,3% pelo ex-cônjuge e 1,6% pelo namorado.

“Uma mulher chegou a nós muito chorosa. O marido havia a agredido física e verbalmente, a trancado no banheiro e forçado uma relação anal. Conversando com ela, percebemos que ela já vinha sofrendo outras violências, como relações vaginais forçadas, e humilhações”.

Quem conta esse relato é a Dra. Ivete Boulos, consultora técnica do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para assuntos relacionados à violência sexual e coordenadora dos ambulatórios de gestantes HIV positivo, Hepatite B, e Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (NAVIS), no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-USP). Há 18 anos, histórias como essas passam pelas portas do Hospital das Clínicas.

“Elas precisam de ajuda, mas a sociedade diz: ‘Mas ele é seu marido. Como você vai fazer isso com ele?’ Elas ficam no espectro da violência porque não encontram apoio na sociedade. Muitas pessoas ficam caladas por tanto tempo porque não existe ajuda evidente”, esclarece a médica.

Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), obtidos pela Folha de São Paulo via Lei de Acesso à Informação, apontam o registro de 145 mil casos de violência contra a mulher só em 2018, excluindo os casos em que as mulheres não sobreviveram.

Foram analisados 1,4 milhão de notificações recebidas entre 2014 e 2018, e revela que houve um aumento de 53% nos registros de violência sexual no período. Neste tipo de violência, 7 em cada 10 vítimas são crianças e adolescentes.

A importância do acolhimento

O primeiro acolhimento que as vítimas recebem influencia diretamente na presença ou não de uma notificação.

“A violência sexual é cercada pela discriminação e o preconceito. Nas delegacias, as mulheres costumam ser revitimizadas. Elas ouvem perguntas como ‘O que você estava fazendo? Que roupas estava usando?’ ”, comenta o ginecologista Cristião Rosas.

Para ele, uma mulher que passa por essa violência precisa ser acolhida, protegida de doenças e da gravidez. “É uma tragédia nacional que vem sendo banalizada pelos governantes. Não é uma brincadeira, um faz de conta. É um caso sério que impacta a vida destas mulheres. Os casos na delegacia são apenas a ponta do iceberg”.

Segundo análise feita pelo Atlas da Violência 2018, se a subnotificação brasileira fosse semelhante à do Estados Unidos (apenas 15% dos estupros são reportados à polícia) ou girasse em torno dos 90%, o Brasil teria entre 300 mil e 500 mil casos de estupro por ano.

"Aqui tentamos conscientizar a vítima para que ela entenda que a violência ocorre porque existe um agressor, ele é o culpado e não ela", disse Rosas.

A Lei 12.845, sancionada em 2013, garante às vítimas de estupro o atendimento integral e gratuito no Sistema Único de Saúde (SUS) sem a necessidade de um Boletim de Ocorrência (B.O).

A vítima deve procurar atendimento de emergência até 5 dias depois da violência. O atendimento inclui medicação com antirretrovirais para prevenir o HIV, e deve ser tomada por 28 dias.

“A medicação é um lembrete diário do que aconteceu. Isso só mostra como o acolhimento é fundamental. Criar o vínculo emocional é tão importante quanto os remédios”, esclarece a médica Ivete Boulos.

O acompanhamento médico pode se estender por até 6 meses, enquanto o psicológico não tem tempo limite. Além de acolher a vítima, em casos que envolvem menores de idade, é necessário acolher a família responsável pela criança também.

“Sem o apoio familiar pode haver um retrocesso no tratamento. Os responsáveis, se não estiverem envolvidos, podem fazer a criança reviver a história várias vezes ao pedir que contem a parentes e amigos da família”.

Os rastros da violência

“Casos de estresse pós-traumático são mais intensos em vítimas da violência sexual. Nada se compara à dor de quem sofreu violência sexual, pela intensidade, a brutalidade”, comenta a coordenadora do NAVIS, Ivete Boulos.

Algumas mulheres que sofreram a violência há anos, por vezes ainda crianças, acabam buscando auxílio no NAVIS. Por não terem buscado ajuda antes, muitas podem ter traumas que estão impactando seus relacionamentos, problemas de fertilidade ou DSTs não tratadas.

“Elas costumam ficar anos sem ir ao médico porque não querem tirar a roupa, não conseguem. Teve uma paciente que só foi ao oftalmologista porque não teria que tirar a roupa, e acabou descobrindo que estava com sífilis”.

Para o coordenador da Rede Médica Pelo Direito de Decidir, Cristião Rosas, cobrar das vítimas que relembrem de todos os detalhes da violência é incoerente.

“Elas podem não ter uma memória fática da agressão, mas sim sensorial. Elas vão lembrar da barba do violador, de um cheiro. E terão dificuldade para relatar a agressão. Quem for atendê-las precisa estar preparado para não as pressionar”.

Para Cristião, a dificuldade em acessar o direito ao aborto legal em caso de gravidez fruto de um estupro é uma extensão da violência a que essas mulheres são submetidas.

“Onde estão essas mulheres? Elas buscam o atendimento clandestino. Eu lembro de uma menina de 12 anos que atendi. Ela foi violentada por dois jovens que invadiram sua casa. Ela segurou no meu braço, apertou bem, e falou: ‘Doutor, tira essa coisa de mim’. ”

Cuidado psicológico e social

A equipe do Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual do HC-USP preza pelo acolhimento humano e a criação de vínculo com as vítimas.

Silmara Alberguini atua há 11 anos como assistente social do NAVIS, tendo realizado pesquisas acadêmicas sobre violência sexual durante esse tempo.

“Se a mulher não é bem acolhida, não tem o vínculo, a segurança, ela pega a profilaxia – medicação preventiva de infecções -, vai embora e não volta para um acompanhamento psicológico”.

Como assistente social, Silmara traça um perfil da vítima em relação aos relacionamentos familiares, um perfil socioeconômico, cuida para providenciar um afastamento do trabalho, oferecer orientação judicial e suporte caso a mulher queira denunciar.

“Aqui tentamos conscientizar a vítima para que ela entenda que a violência ocorre porque existe um agressor, ele é o culpado e não ela. Promovemos um diálogo em que ela não se veja como culpada, mas acolhida o suficiente para entender que foi vítima”.

Silmara ressalta que nenhuma vítima é obrigada a realizar o B.O, mas se a mulher se sentir forte e quiser, ela será orientada.

“As mulheres têm medo do julgamento social que pode vir caso relatem o ocorrido. Uma paciente contou que foi realizar uma denúncia na Delegacia de Defesa da Mulher, e a delegada a culpou pelo ocorrido. Ela estava em uma balada e colocaram um “boa noite Cinderela” em sua bebida. Isso é errado. Ela tem o direito de beber o quanto quiser e não ser violada”.

Outro caso que a assistente social acompanhou foi de uma senhora de 64 anos. Ao chegar para ser atendida, ela disse que havia caído, porém estava com sangramento vaginal. “Ela não queria contar porque esperava ouvir que ela era a culpada. Ela ficou muito surpresa com o acolhimento que nós demos”.

A psicóloga do NAVIS e da Clínica de moléstias infeciosas e parasitárias do Instituto Central do HC-USP, Lia Maria Brito, revela que o atendimento psicológico “funciona como um espaço para que elas exponham seus sentimentos. Não há obrigatoriedade de contar a história da violência. Deve haver um respeito à vontade delas”.

As mulheres não procuram os serviços porque eles não estão expostos. Ás vezes, existe um serviço perto de casa, mas elas não sabem e não têm como saber

O acompanhamento psicológico no NAVIS tende a durar em média 1 ano e meio, e se houver necessidade de continuar por mais tempo, a vítima é encaminhada para outro serviço.

“O suporte psicológico tem como objetivo fortalecer a psique da vítima para que ela consiga enfrentar a situação”.

Além do estresse pós-traumático, mulheres vítimas da violência sexual podem passar por um período de insônia, ter depressão, dificuldade para praticar atividades cotidianas ou para saírem sozinhas.

“Elas se sentem mais vulneráveis. Se elas passam por um aborto [resultado da violência] também, fica mais difícil falar sobre o assunto, porque é um sofrimento intenso”.

Com base nos estudos e nas entrevistas que fez, Silmara observou que a violência sexual “é uma forma do agressor ter poder sobre a vítima. O tratamento ameniza, mas elas não superam. Ter seu corpo invadido de forma violenta, sem o seu consentimento, isso fica como uma cicatriz”.

Problemas

Para a médica Ivete Boulos, a falta de um serviço organizado e com uma comunicação integrada prejudica as mulheres e meninas que precisam do serviço.

“As pacientes precisam realizar uma peregrinação. É uma coisa absurda. Não temos uma rede organizada. O ideal seria ter um centro de referência em cada região do Estado”.

Ela ainda ressalta a importância de capacitar quem recebe essas mulheres, pois muitas vezes não se tem as informações sobre o serviço e a sensibilidade para atender.

“Os porteiros são o primeiro contato. Se eles não estiverem capacitados, com a informação e sensibilizados com esses casos, elas voltam da calçada. Só querer abrir a porta e não capacitar não resolve o problema”.

Sobre a violência sexual, a médica considera fundamental falar de forma aberta sobre o tema. “Tem que se abrir as portas, as janelas, falar sobre isso. Se uma tem coragem para falar, quantas depois não irão aparecer? Precisamos romper o silêncio”.

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