O lado bom e ruim da profissão

Ser professor é ter reconhecimento e acumular traumas no dia a dia

Carreira exige, além de conhecimento, dedicação em áreas do saber; também é fomentadora do medo e de traumas no profissional; docentes que fazem de sua profissão um sacerdócio ainda recebem gratidão dos alunos

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22

“Até hoje, quando escuto a sirene da escola, sinto arrepio!”. A frase é de uma professora que, por medo, preferiu preservar a identidade. Aos 59 anos, a profissional é apenas um exemplo do quanto a carreira de magistério pode gerar traumas. Em contrapartida, a profissão ainda glorifica trajetórias que, de tão belas, são qua­se inacreditáveis.

A carreira docente, nos tempos atuais, é viver na linha tênue entre a gratificação - como o carinho recebido pelo professor Luís Alfredo em sala de aula, em cursinho preparatório do Enem - e a repressão cometida por “pseudoalunos”.



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Dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ODCE) sobre violência em escolas com mais de 100 mil professores apontam que o Brasil lidera o ranking de agressões contra docentes. Segundo o levantamento, dentre os profissionais ouvidos, 12,5% afirmaram já terem sido de vítimas de agressões verbais ou intimidações de alunos.

A agressão verbal (com 44%) é a mais comum. A infração é seguida por discriminação (9%), bullying (8%), furto/roubo (6%), e agressão física (5%). Ofensas aos docentes e enfrentamento em sala de aula são os fatores de maior reclamação pelos professores enfrentados atualmente.

[e-s001]ABRINDO O JOGO

“Cheguei a ter aluno com arma em sala de aula!”

Com medo de falar e temendo retaliações, O Estado ouviu a professora “L”, que está afastada das funções diárias de professora há quase um ano, após sofrer danos graves psicológicos devido às várias agressões sofridas por ela e cometidas por alunos, nos últimos meses. Mesmo com danos, a professora disse que o objetivo é voltar à sala de aula para “retomar a carreira”.

Como a senhora avalia a sua carreira ao longo dos anos?
Muito positiva. Até hoje, recebo o reconhecimento de alunos pelo trabalho realizado por 26 anos. Se fosse para voltar no tempo, queria novamente ser professora. É muito gratificante saber que fomos referência positiva na vida de tanta gente.

Quais são as dificuldades, por exemplo, de se dar aula em unidade de ensino em um bairro considerado popular?
São várias. A primeira delas é que, muitas vezes, temos que perguntar para aquele aluno ou aluna se fez alguma refeição no dia. Por que razão faltou tanto em determinada semana. Uma vez, questionei um aluno que me falou que o motivo da ausência era pelo fato de que tinha ficado doente e a mãe e o pai não tinham dinheiro para comprar o remédio. Isso é grave e nosso trabalho é justamente tentar atenuar isso, além de se preocupar com o conteúdo dado.

Como foi o dia em que a senhora chegou em sala de aula e um aluno estava armado?
Era noite e em determinado bairro da Ilha. Quando cheguei, a sala estava lotada e este aluno sentava na frente. A arma estava com os cartuchos na cadeira dele. Quando perguntei o porquê da arma, ele me disse que tinha que andar assim pois a turma da facção rival tinha ameaçado entrar na escola para matá-lo. Como dar aula assim, com um aluno armado em sala?

A senhora sofreu agressões verbais de alunos?
Sim, infelizmente. Não somente de alunos, como de mães. Em umo episódio, uma mãe começou a me xingar por supostamente ter batido a cabeça do filho dela na parede. Chamei o jovem e perguntei. Ele disse que nada disso tinha acontecido, mas até ouvir dele isso, a mãe não pensou duas vezes. E eu era amiga desta mãe, pelo menos achava que era.

Apesar de todo o sofrimento recente, a senhora quer voltar a dar aulas. Por quê?
Primeiramente, porque amo o que faço. Depois, preciso encerrar meu ciclo. Ensinar é mudar a vida de uma pessoa. É orientar com lições básicas e fazer a diferença na vida deste jovem e futuro adulto. Só a educação pode salvar este país. Acredito fielmente nisso e, por essa razão, assim que estiver pronta, vou voltar a dar aulas.

[e-s001]Lado doce: as cinco décadas de docência

Quem nunca ouviu falar das tiradas em sala de aula do professor Fernando Novaes? Nascido em Coroatá (MA) e criado em Pirapemas, também no interior do estado, o mestre que em 2020 completará 50 anos de docência e tem a sua história ligada ao seminário.

Aos 15 anos, após seguir carreira, o professor prestou serviço em 65 instituições e, com quatro carteiras de trabalho preenchidas, nem pensa em abandonar carreira. “Eu amo o que faço. E faço com amor, com crença de que somente pela Educação é possível mudar este país”, disse.

Fã das obras de Machado de Assis e do legado de Antoine de Saint-Exupéry com obras como “O Pequeno Príncipe”, foi a partir da leitura de trechos bíblicos em rituais religiosos que o docente percebeu o gosto pelo ensinamento no magistério. “Os dirigentes entenderam que eu tinha o dom da explicação e de me manifestar em público. Daí, para a sala de aula, foi apenas um passo”, explicou.

O professor, por pouco, não se formou em Direito. Antes de iniciar o penúltimo período, Fernando Novaes abandonou a carreira e ingressou no curso de Letras. “Comecei na UFMA e terminei na Uema [Universidade Estadual do Maranhão]”, afirmou.

Nos anos de atividade do magistério, várias amizades e colaboração na formação de políticos, juristas, empresários e ex-alunos que enveredaram para outros ramos. Ao resumir a carreira, Novaes frisa os três pré-requisitos necessários para a boa construção textual. “Três são os pilares. O primeiro deles é o domínio da cultura geral, ou seja, ler boas reportagens e ter conhecimento do que está acontecendo no país e no mundo. Em seguida, vem o conhecimento linguístico e as regras de escrita e concordância. Por fim, é fundamental a prática textual”, disse.

Os conteúdos de Novaes, em sala de aula, são assimilados de forma clara e prática com “tiradas” inesquecíveis. “Quem foi que disse que chuva é ruim? Vai dizer para o agricultor lá em sua produção? Eu não consigo entender certos vícios de linguagem que ainda são usados”, afirmou.

Para o professor, perdeu-se o respeito entre docente e aluno. “Já houve mais esse respeito à figura. Graças a Deus, nunca tive problemas com alunos. Porém, é preciso saber que antes o professor era mais respeitado”, disse.

[e-s001]Conhecimento da religião e da palavra de Deus: o teólogo

Vindo de Recife (PE) em 1983, o professor Manoel Rodrigues ensina teologia há aproximadamente 35 anos. A sabedoria, o cuidado ao falar os termos de forma correta e o zelo com o aprendizado do alu­no são virtudes fomentadas pelo profissional que, aos 64 anos, ain­da dá aulas.

O gosto pela teologia (ciência ou estudo da palavra de Deus) se justifica, segundo ele, pela vocação. “Eu senti o chamamento de Deus e percebi que tinha um dom para a oratória. Era o início de minha história em sala de aula”, disse.
Sua esposa, Glória, o conheceu um ano após o começo na docência. Ela se refere ao marido como “querido” até hoje. “Ele [Manoel] me enche de orgulho. Seu amor ao que faz é comovente”, disse.

O Estado acompanhou um dia de aula do professor Manoel. Ele recebeu o jovem Hugo, de 18 anos em sua própria residência, no Parque Topázio, em São Luís. O jovem está nos primeiros passos da formação na área. “Gosto dos ensinamentos e contar com um mestre [Manoel] nos ensinamentos, para mim, é uma segurança para continuar na minha trajetória”, afirmou.

Apesar do ensinamento aos jovens, predominantemente seu perfil de aluno é acima dos 40 anos de idade. “Muda a postura, pois um aluno desta idade tem um conhecimento de vida superior em comparação ao da pessoa mais nova. Equilibrar estes diferentes perfis de es­tudantes é um desafio”, afirmou.

Arsênia: do amor aos animais à sala de aula

O amor pela docência começou logo cedo na vida de Arsênia Formiga. Mesmo ocupando cargo administrativo, a profissional resume a trajetória de vida que, prioritariamente, permeia a carreira co­mo professora. “Ingressei na universidade ao 18 anos e minha escolha inicial foi a medicina veterinária. Mas apesar de ter cursado quase sete períodos, deixei o curso. Fiz então uma nova escolha a partir de minhas vivências de dar aulas particulares pra crianças, em casa. Decidi cursar Pedagogia na UFMA [Universidade Federal do Maranhão]. E me encontrei como educadora”, afirmou.

Professora de carreira consolidada e coordenadora pedagógica da rede pública, Arsênia Formiga cita os desafios da profissão. “No Brasil inteiro, especialmente na educação básica, mas também na superior, ser professor é um gran­de e permanente desafio. É verdade que os profissionais do magistério já tiveram avanços nas politicas de valorização, como um piso nacional, tempo destinado para as atividades de estudo e planejamento, melhores condições de trabalho, dentre outros. No entanto, é preciso mais”, disse.

ALUNOS QUE AMAM SEUS PROFESSORES

Um dos sentimentos mais nobres do ser humano é a gratidão.O Estado reuniu dois ex-alunos que relataram as diferenças que um bom professor fez em suas vidas.

Atualmente promotor de Justiça, Igor Adriano Marques destacou a figura dos educadores na formação de seu caráter. “Meus professores sempre foram referências por seus conhecimentos científicos e por suas capacidades de influenciarem na formação do caráter da pessoa com o repasse de valores morais e éticos. Ele [Hilton Franco], por exemplo, ministrava as aulas de uma forma que nos chamava a atenção, e sua preocupação pelo aprofundamento das questões debatidas em sala de aula também foi importante. Fui aluno dele da sétima série ao terceiro ano, fora os cursinhos. A forma didática, como se portava e se pautava sobre os assuntos me marcou demais”, afirmou.

O atual promotor quer seguir carreira no magistério. “Pretendo no futuro lecionar como professor universitário”, disse.
O oficial de Justiça, Flávio Oliveira, também fala com orgulho dos seus antigos mestres. “Falar sobre professor é sempre algo gratificante, não cabe em uma matéria. Eu conseguia ver o professor como um exemplo e enxergava meus professores além do conteúdo que repassavam”, disse.

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