Santa brasileira

Irmã Dulce: relação com políticos e empresários foi pilar de obra social

Sem tomar partido de grupos políticos, religiosa construiu rede de relações que viabilizou projetos; sua relação mais próxima, contudo, foi com José Sarney, que patrocinou a indicação da freira para o prêmio Nobel da Paz em 1988

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22
José Sarney foi o presidente mais próximo de Irmã Dulce, que será canonizada neste domingo
José Sarney foi o presidente mais próximo de Irmã Dulce, que será canonizada neste domingo (Divulgação)

SALVADOR - Ela conviveu com presidentes da República de diferentes épocas, de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) a Fernando Collor (1990-1992). Com sua persistência, teimosia e senso deoportunidade, transformou essas relações em um dos principais pilares de seu trabalho social.

Entre a atuação solitária junto a pobres e doentes nas favelas de Salvador e a
consolidação de um complexo que faz atualmente 3,5 milhões de atendimentos por
ano, Irmã Dulce (1914-1992) precisou gastar muita saliva para angariar apoio financeiro
entre políticos e empresários.

A freira será canonizada neste domingo,13, em cerimônia chefiada pelo papa Francisco, no
Vaticano, após ter dois milagres reconhecidos pela Igreja Católica. Ela será a primeira
santa brasileira. Quem não vai à Santa Sé, pode ver em emissoras de TV, mas vai ter que madrugar para o horário de canonização de Irmã Dulce: a cerimônia começa às 5h15, no horário de Brasília (10h15 no horário de Roma)

Sua primeira escola foi o frade alemão Hildebrando Kruthaup, com quem fundou em 1937 o Círculo Operário da Bahia, rede que garantia assistência social aos trabalhadores das fábricas de Salvador e suas famílias.

Influente e bem relacionado, o frade costumava obter contribuições de mulheres da alta sociedade baiana. A partir dos anos 1940 , quando iniciou a sua própria obra social, Irmã Dulce seguiu os ensinamentos de seu conselheiro e também construiu a sua rede de relações.

Ainda à frente do Círculo Operário da Bahia, conseguiu doações para erguer a nova sede da entidade com duas das mais poderosas entidades empresariais da Bahia na época: o Instituto do Cacau e o Instituto do Fumo.

Mas não mirava só os grandes: também pedia dinheiro, equipamentos e instrumentos de trabalho para pequenos lojistas de Salvador. Nem sempre era bem recebida, vide o conhecido caso de um comerciante que teria cuspido em sua mão estendida.

Obras sociais

A partir de 1959, com a fundação das Obras Sociais Irmã Dulce, o contato com os empresários não ficou restrito a doações. Ao longo dos 60 anos da entidade, pesos pesados do empresariado baiano como Norberto Odebrecht e Ângelo Calmon de Sá tiveram cargos de direção nas obras de Irmã Dulce.

A relação com os presidentes veio a partir de 1948, quando a freira ficou frente a frente com Eurico Gaspar Dutra, que foi à Bahia inaugurar uma estrada e fez uma visita à nova sede do Círculo Operário. Após caminhar com o presidente junto a uma multidão, a freira não se
fez de rogada e inseriu na conversa o seu pedido: queria um repasse federal para quitar a construção da nova sede da entidade.

O dinheiro saiu um ano depois, após uma articulação política que incluiu até uma visita de Irmã Dulce ao Rio de Janeiro, então capital federal. Foram liberados oito milhões de cruzeiros (cerca de R$ 12 milhões em valores atuais).

Em 1979, recebeu a visita do general João Figueiredo, último presidente do regime militar. Acompanhado da freira e de oito ministros, ele percorreu o hospital, onde se amontoavam doentes nos corredores, nas enfermarias e até no necrotério, onde macas foram improvisadas
como leitos.

Sua relação mais próxima, contudo, foi com José Sarney, que patrocinou a indicação da freira para o prêmio Nobel da Paz em 1988. Em entrevista ao jornalista Graciliano Rocha, autor da biografia Irmã Dulce, a Santa dos Pobre, o empresário Norberto Odebrecht deu a dimensão da proximidade entre Irmã Dulce e Sarney ao relatar uma conversa sua com o ex-presidente. “Aquela mulher é uma santa, Norberto. O que ela pedir eu dou”, afirmou Sarney, segundo relato do empreiteiro. Além de recursos para a construção de uma nova ala do hospital gerido
por Irmã Dulce, Sarney ainda deu o contato do telefone direto da sua mesa, para que a freira falasse com ele sem interlocutores.

Homenagem a Sarney

Ao presidente Irmã Dulce fez sua única homenagem a um político: batizou a nova ala do hospital com o nome de José Sarney - isso em uma época na qual o presidente enfrentava uma grande impopularidade.

Da mesma forma que Irmã Dulce conseguia doações e verbas por meio de presidentes e governadores, os políticos se valeram de sua influência. Mas, em geral, a freira não fazia lisonjas a políticos nem gostava quando eles usavam seu nome para atrair eleitores. Com Antonio Carlos Magalhães (1927-2007), três vezes governador da Bahia, teve uma relação dúbia, mas cordial. O político costumava atender aos pedidos da freira, que na infância havia sido sua vizinha e o chamava pelo primeiro nome. Mesmo assim, não há registro de nenhum momento no qual a freira tenha tomado partido de um determinado grupo político. “Ela nunca pediu voto para ninguém” afirma o chefe da Assessoria de Memória e Cultura das obras Irmã Dulce, Osvaldo Gouveia.

A própria Irmã Dulce afirmou: “Não entro na área política. Não tenho tempo para me inteirar das implicações partidárias. Meu partido é a pobreza ”. Mesmo após a morte da freira, em 1992, a sede de sua entidade passou a ser parada obrigatória para políticos, incluindo presidentes e presidenciáveis. Mostra disso é que, todos os anos, durante a Lavagem
do Bonfim, prefeito e governador interrompem o cortejo, que passa em frente à sede da entidade, para uma visita de cortesia.

O suprapartidarismo deve se repetir no dia 20, quando será realizada a cerimônia de celebração da canonização em Salvador. Em torno da figura de Irmã Dulce, estarão no mesmo palanque um trio de adversários: o prefeito ACM Neto (DEM), o governador Rui Costa (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Em 2011, a Igreja Católica anunciou a beatificação da freira, reconhecendo o seu primeiro milagre . O caso aconteceu em 2001, em Sergipe, quando as orações a Irmã Dulce teriam feito cessar uma hemorragia em Claudia Cristina dos Santos, que padeceu durante 18 horas após dar à luz o seu segundo filho. Em 2019, foi reconhecido o segundo milagre : depois de 14 anos convivendo com uma cegueira causada por um glaucoma, o maestro
Jose Maurício Moreira recuperou a visão em 2014.

Com uma grave conjuntivite, ele colocou uma imagem de Irmã Dulce sob os olhos e suplicou que as dores cessassem. No dia seguinte, ao acordar, a nuvem esfumaçada que ele enxergava foi se dissipando e ele voltou a enxergar. Os médicos não encontraram explicação para a cura.

QUEM FOI IRMÃ DULCE
Biografia

Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes, conhecida como Irmã Dulce, nasceu em 1914, em Salvador. Responsável por construir uma das maiores obras de assistência social gratuita do país, a freira era chamada de “anjo bom da Bahia”. Morreu em 1992, aos 77 anos

Milagres
Irmã Dulce teve dois milagres reconhecidos pelo Vaticano. Em 2001, as orações em seu nome teriam feito cessar uma hemorragia de uma mulher de Sergipe que padeceu durante 18 horas após dar à luz o seu segundo filho. Em 2014, um maestro baiano voltou a enxergar após 14
anos de cegueira

Fique por dentro

A cerimônia de canonização

Neste domingo,13, Irma Dulce será canonizada pelo papa Francisco, em cerimônia realizada no Vaticano. Com isso, se tornará Santa Dulce dos Pobres, a primeira mulher brasileira a ser declarada santa pela Igreja Católica.

- A missa começa com o canto inicial e, logo depois, o Papa abre a celebração. Em seguida, há um canto de “invocação do Espírito Santo”. A ideia é pedir a Deus que o ajude a tomar uma decisão acertada.
- O cardeal prefeito da Congregação para a Causa dos Santos – hoje o italiano Dom Angelo Becciu – “apresenta” ao Papa os novos santos. Ele lê uma pequena biografia de cada um.

- Desta vez, com a Irmã Dulce, serão canonizados também o teólogo e cardeal John Henry Newmann, um dos principais intelectuais cristãos do século 19; outras duas religiosas, Giuseppina Vannini e Maria Teresa Chiramel Mankidiyan, e uma catequista, chamada Margherita Bays.

- Depois vem uma “ladainha”, que é um canto longo, no qual a Igreja invoca a intercessão de todos os outros santos. Os nomes de muitos santos são mencionados nessa ladainha. Mais uma vez, a ideia é pedir que todos eles ajudem o papa a tomar a decisão mais certa.
Finalmente vem a “fórmula da canonização”. Depois que o Papa lê esse texto em latim, eles já são considerados Santos.
- Esta é a fórmula que pode ser usada: "Em honra da Santíssima Trindade, pela exaltação da fé católica e para incremento da vida cristã, com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e Nossa, depois de refletir por muito tempo, ter invocado a ajuda divina e ouvido a opinião de muitos Irmãos no Episcopado [bispos], declaramos e definimos Santos os beatos [aqui entram os nomes dos novos santos] e os inscrevemos no registro dos santos, estabelecendo que em toda a Igreja eles sejam devotamente honrados entre os santos. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo". Em seguida, há um canto de comemoração para celebrar a canonização e agradecer a Deus.
- O cardeal prefeito agradece ao Papa pela decisão e pede que ele redija uma "carta apostólica", documento que formaliza a canonização.
- A partir desse ponto, a missa continua normalmente, como uma missa comum de domingo: com leituras da Bíblia, a pregação do Papa (ou "homilia"), consagração do pão e do vinho, e a comunhão.
- É comum, no Vaticano, que logo após a missa o Papa reze a tradicional oração do Ângelus, ou oração do meio-dia. É uma oração a Maria, mãe de Jesus, que ele reza todos os domingos na Praça de São Pedro. Nesse momento, ele pode comentar alguma situação política ou humanitária do mundo.
- Imagens dos novos santos ficam expostas na Praça de São Pedro desde o início da missa – diferentemente da "beatificação", quando a imagem ou foto oficial é revelada só durante a missa. Os beatos são pessoas de boa reputação que podem ser honradas localmente, mas ainda não por toda a Igreja. Com a canonização, eles passam a ser chamados "santos" e celebrados no mundo inteiro.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.