Rompendo o silêncio

Anjo e demônio da Praia Grande

O reencontro com o artista plástico e dançarino Mondego, que ficou dez anos sem falar e agora diz que é anjo, mas também demônio

Antonio Carlos Lima / Especial para O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23
Mondego e sua arte intrigante, inspirada nos próprios conflitos
Mondego e sua arte intrigante, inspirada nos próprios conflitos

Celebração pelo encontro
São quase cinco da tarde quando deixamos o apartamento e a Morada das Artes. O sol, já quase posto, projeta uma luz amarelada sobre as fachadas de azulejos da Praia Grande.

No primeiro bar, bebemos longas canecas de cerveja artesanal, escura e saborosa, e, para completar, uma dose de tiquira cada um. Demoramo-nos algum tempo no Flor de Laranjeira, bar e restaurante que exibe floreiras artificiais na calçada. Mais cervejas e novas doses de tiquira.

O encontro é uma celebração. Mondego, sempre falante, mostra que está feliz e nos contagia com sua felicidade. Por um descuido, retira a máscara, e eu não perco a chance de fotografá-lo com a mesma barbicha e o rosto esquálido de Dom Quixote, mas aparentemente bem mais saudável do que quando o vira dez anos antes.

Já é noite quando revolvemos seguir para a Rua do Giz, onde, no alto de um sobrado, dança um grupo de tambor de crioula. Subimos, e imediatamente Mondego entra na roda, dançando magistralmente, quase deslizando entre as dançarinas e coreiras. Nunca o vira dançar. Rumamos em seguida para a morada do professor Inaldo Mondego, um lindo sobrado com balcões internos de madeira que descortinam os telhados dos velhos casarões do centro histórico enegrecidos pelo tempo.

A arte é a minha vida, minha forma de expressão, minha existência. Esse é o meu modo de falar com a multidão, com o planeta”Mondego, artista plástico

Novas libações.
Quando descemos, uma lua imensa desponta no alto, como se surgida repentinamente do Beco da Pacotilha, iluminando o bairro inteiro. Mondego repetiu: “Sou o demônio. Anjo e demônio”.

Resolvemos encerrar o passeio, mas, ao chegarmos novamente à Rua Portugal, deparamos com o Buriteco, um barzinho & café simpático e quase vazio. Dentro, uma banda de garotos de Caxias, a Casino Quebec, tocava Beatles, e mudamos os planos. Entre novas canecas de cerveja e doses de tiquira e uma música maravilhosa executadas apenas para nós, vivemos quase uma epifania.

Ao nos despedirmos no meio da rua, eufóricos e felizes com aquele encontro, nos abraçamos, formando um círculo, como na tela famosa de Matisse.

Era uma da manhã. A lua lá no alto nos fitava. Sirenes de barcos soavam no porto em frente, anunciando a chegada de pescados da Baixada. E ficamos ali abraçados, Lauro, Mallmann, eu e Mondego com sua máscara vermelha na cara. Acho que estávamos chorando.

Ainda Mondego
Aviso aos distraídos: Edson de Jesus Mondego é um dos mais importantes artistas plásticos do Maranhão e um dos maiores do Brasil, embora pouca gente o conheça para além do Estreito dos Mosquitos.

Pertence à geração de Cosme Martins, Fernando Mendonça, Zé Roberto Lameiras e Geraldo Reis. Descobriu a pintura com o amigo de infância Rubens Amaral, e mais tarde, estudou com Rubens Gershman, entre outros grandes nomes. Integrou o ateliê de Luigi Eboli Tavolozza, em Nápoles e desenvolveu um modo original de pintar, fusão de vários estilos, com predominância do impressionismo.

Foi bailarino com Reinaldo Faray, estudou com o Balé Bolshoi e com o Ballet do Século XX, de Laura Proença, no Rio e São Paulo, mas a pintura foi sempre a sua forma de expressão mais natural. E São Luís, a sua cidade do coração. Foi casado durante 25 anos com a artista plástica Wanise. Tem cinco filhos.

Mais do que bailarino e pintor, Mondego é um personagem singular da paisagem humana e cultural de São Luís do Maranhão.

Conheço-o e sou seu amigo e admirador há trinta anos, e dele guardo, como um tesouro, uma pequena tela a óleo, uma mulher nua, em amarelo e azul vangoghiuano.

Mas nunca tinha tido um encontro tão marcante com ele, o anjo, que também é o demônio da Praia Grande, quanto o daquele sábado de sol e lua magníficos!

Antonio Carlos Lima
Jornalista, membro da Academia Maranhense de Letras
E-mail: antonioacglima@gmail.com

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