Artigo

O barquinho ia

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23

Atravessar a ponte de São Francisco é passar de uma cidade a outra. O nome é o mesmo, São Luís, mas não a cidade. Uma, a velha, foi fundada no início do século XVII; a outra, a nova, não foi fundada, brotou.

Ir da Beiramar para o São Francisco, pela ponte, não é ir. Para mim, é voltar a outro tempo. O barquinho ia aos domingos para a Ponta da Areia, logo depois do São Francisco, levando meu pai, Carlos Moreira, minha mãe, Maria, eu e meus irmãos de suspensórios e calças curtas, cabelos repartidos de lado, com o compadre Queiroz. Quantas vezes fizemos essa travessia? O carro de praça (chamado táxi) que nos levava ao ponto de embarque tinha de ser contratado dias antes, com os motoristas conceituados conhecidos de quase todos: Dadeco, Astrolábio, Pindobuçu. Nunca me esqueci desses nomes.

Dadeco, num carro marrom claro, ar elegante, acho que usava óculos, mas não sei se os imaginei depois. Ciumento do veículo. Muitas vezes eu ia ali no banco da frente entre meu pai e ele. Quieto, admirando a direção de plástico rígido e o aro de metal de raio pequeno que servia como enfeite e buzina. Astrolábio era, para mim, sério demais, não gostava de muita conversa. O carro preto e pesado, de linhas arredondadas, me parecia enorme. A parte da frente, do para-brisa ao para-choque da frente, ocupava quase a metade do comprimento do automóvel. Pindobuçu (será que era ele o que usava óculos, ou os dois usavam?) era simpático e risonho com seu tom de voz um pouco agudo e cabeça coberta com uma cabeleira grisalha. Seu carro era um meio termo entre a sobriedade e elegância do de Dadeco e as linhas mais populares do de Astrolábio.

Quase não me recordo da viagem, se o barco jogava, se não jogava, quanto tempo levava. Sei que o barco era a remo. Do cheiro do mar, sim, me lembro, ou seria do rio? Ali, aonde o Anil chega na baía de São Marcos, não se sabe onde o salgado começa ou o doce acaba. Cheiro de água doce, cheiro de mar, cheiro de verde, cheiro de mangue, todos juntos, o ar salitroso e pegajosas em nossas peles, aumentando a queimadura do sol.

A sensação era de aventura, como as que víamos nos seriados de domingo no cine Rialto, na rua do Passeio, para aonde íamos do distante Monte Castelo. Era também de fascinação com as histórias que se contavam do lugar: - Tem areia movediça na Ponta da Areia, já morreu muita gente lá. A Ponta da Areia não era, então, mais do que uma pequena colônia de pescadores de casas simples e agradáveis. Antes tinha sido o local de aldeias indígenas, das quais a história, nos livros dos invasores brancos, não deixara registro.

Na chegada éramos recebidos pelos agregados da propriedade de seu Queiroz que nos ajudavam a desembarcar. Tomávamos banho de mar sob o olhar vigilante da mãe, comíamos o peixe e o camarão, descansávamos um pouco, abrigados em barracas improvisadas, tomávamos guaraná Jesus ou água de coco (era uma época sem Coca-Cola), os adultos conversavam, e regressávamos todos depois do almoço, sem nunca sermos tragados pela areia, um pouco frustrados pela ausência de perigo que nos amedrontava e atraía.

Para terminar a jornada, à noite, em casa, ouvíamos histórias de Cajapió, contadas pela avó Marcelina, de navios encantados, sereias e do diabo que se disfarçava nos bailes e era descoberto porque tinha os pés voltados para trás. Não havia televisão, internet, computador. Não havia ponte. Mas o barquinho havia. O barquinho ia.

Lino Moreira

PhD, economista

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