Na Colômbia

Ex-número dois das Farc anuncia ''nova etapa da luta armada''

Atual líder do partido formado pela antiga guerrilha rebate ex-colega de armas, pede desculpas ao país e diz que continuará lutando pela paz: ''É o caminho certo''

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23
Iván Marquéz, ao centro, anuncia ''nova etapa da luta armada
Iván Marquéz, ao centro, anuncia ''nova etapa da luta armada (Reprodução)

BOGOTÁ - O antigo número dois das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia ( Farc), Iván Márquez , cujo paradeiro era desconhecido havia mais de um ano, reapareceu nesta quinta-feira em um vídeo ao lado de outras antigas lideranças do movimento guerrilheiro para anunciar uma "nova etapa da luta armada".

"Anunciamos ao mundo que começou a segunda Marquetalia [lugar onde as Farc nasceram da década de 1960] sob o amparo do direito universal que dá a todos os povos do mundo o direito de se armarem contra a opressão", disse Márquez, em um vídeo de 32 minutos postado no Youtube. "Nunca fomos vencidos ou derrotados ideologicamente. Por isso, a luta continua. A história registrará em suas páginas que fomos obrigados a retomar as armas".

O dissidente, ex-chefe da da equipe de negociação das Farc que chegou a um acordo de paz com o governo colombiano em 2016, afirma no vídeo que a decisão de voltar às armas é "a continuação da luta guerrilheira em resposta à traição do Estado ao acordo de paz de Havana". Ele diz que seu grupo buscará alianças com o Exército de Liberação Nacional ( ELN ), última guerrilha em atividade na Colômbia:

"Buscaremos coordenar esforços com a guerrilha do ELN e com aqueles companheiros e companheiras que não dobraram suas bandeiras que tremulam por uma pátria para todos", disse Márquez, com um traje verde militar e uma arma na cintura.

Atual líder político rebate

Em uma série de tuítes, Rodrigo Londoño , o Timochenko , ex-comandante militar das Farc e atual líder da Força Alternativa Revolucionária do Comum (Farc), partido formado pela antiga guerrilha, respondeu ao anúncio de Márquez. "Mais de 90% dos antigos guerrilheiros continuam comprometidos com o acordo de paz", escreveu.“Apesar dos obstáculos e dificuldades, estamos convencidos de que o caminho da paz é o caminho certo. Algo que Manuel Marulanda [fundador das Farc] nos ensinou foi a manter sua palavra. Nossa palavra hoje é paz e reconciliação. A grande maioria de nós permanece comprometida com o que foi acordado, mesmo com todas as dificuldades ou perigos que se avizinham, estamos com a paz”, continuou Londoño.

Em entrevista à rádio colombiana Blu Radio, ele disse que Márquez “perdeu a vontade de lutar pela paz”:

"Aproveito para pedir desculpas à Colômbia e à comunidade internacional", completou. À mesma rádio, o comissário para a Paz do atual governo, Miguel Ceballos, disse que o anúncio de Márquez foi "perturbador", mas que não houve surpresa para o governo:

" Infelizmente essas pessoas já haviam deixado claro, com seu comportamento, que dariam as costas ao acordo de paz".

O senador de esquerda Gustavo Petro , ex-prefeito de Bogotá e defensor do acordo de paz, também criticou Márquez. "Iván Marquéz responde como se estivéssemos no século XX. No século em que vivemos e no país em que vivemos, as armas só levam a uma aliança com o narcotráfico e a economia subterrânea. Dali não surgem revoluções", escreveu Petro no Twitter.

Negociação

Humberto de la Calle, que negociou o acordo de paz em nome do governo anterior da Colômbia, do presidente Juan Manuel Santos, disse que o pacto de 2016 continua sendo uma conquista histórica e que o gesto de Márquez "não é a primeira nem será a última crise" envolvendo sua implementação.

"Rejeitamos e condenamos o anúncio de Iván Márquez de volta às armas. É preciso proteger o processo", disse La Calle, que também criticou o governo atual, do presidente Iván Duque, aliado do ex-presidente Alvaro Uribe, um opositor do acordo de paz. " Já dissemos várias vezes que os ataques permanentes ao processo e os riscos de desestabilização jurídica poderiam levar vários comandantes a tomar posições equivocadas. O governo deve assumir com resolução e como Estado a liderança do processo e deixar de atuar com critérios partidários, como fez até agora".

O próprio Santos tuitou em defesa do acordo que firmou: "90% das Farc continuam no processo de paz. É preciso continuar cumprindo-o. Os desertores têm que ser reprimidos com toda contundência. A batalha pela paz não para!"

O acordo, alcançado depois de 50 anos de um conflito que envolveu também milícias de extrema direita e deixou 260 mil mortos, levou à desmobilização de 13 mil integrantes das Farc, dos quais 7 mil combatentes. Desde o ínicio, um número estimado em cerca de mil guerriheiros se recusou a entregar armas, dedicando-se a atividades criminosas na mineração clandestina ou tráfico de drogas.

Fronteira do Brasil e Venezuela

Na gravação divulgada nesta quinta-feira, Iván Márquez afirma que falam de algum ponto nas proximidades do rio Inírida, situado na região amazônica ao sudoeste do país, próxima às fronteiras entre a Venezuela e o Brasil . Ao jornal El Tiempo, fontes do governo disseram que a gravação foi feita na Venezuela , que o presidente Iván Duque acusa de apoiar os combatentes do ELN.

Eleito senador pelo partido formado pelo ex-guerrilheiros, Márquez nunca chegou a tomar posse. Em abril de 2018, ele foi para uma área de desmobilização de ex-combatentes, no sul do país, e deixou de cumprir com suas obrigações perante a Justiça de Paz, cortes de transição estabelecidas pelo acordo de 2016.

Ao seu lado no vídeo, estão os ex-líderes das Farc Hernán Darío Velásquez, conhecido como El Paisa, e Jesús Santrich , que também participou das negociações realizadas em Havana. No final de maio, ele foi libertado da prisão em que estava após ser acusado de tráfico de drogas — acusação que negava — e tomou posse como deputado.Menos de dois meses depois, entretanto, abandonou seu esquema de segurança durante visita a uma zona de reinserção de ex-guerrilheiros no norte do país e desapareceu .

No manifesto, Márquez afirma que a nova insurgência, que reivindica o nome e os símbolos das antigas Farc, não é dirigida a soldados ou policiais "respeitosos dos interesses populares", mas sim à "oligarquia exclusiva e corrupta, mafiosa e violenta, que acredita que pode continuar bloqueando a porta para o futuro de um país". Nesse sentido, ele diz ainda que o Estado colombiano "conhecerá uma nova modalidade operativa".

Em uma aparente referência a sequestros, eles prometem também a "total desobstrução de retenções para fins econômicos", mas afirmam que buscarão "diálogo com empresários, fazendeiros, comerciantes e as pessoas ricas do país, para buscar sua contribuição para o progresso de comunidades rurais e urbanas".

Márquez acrescenta ainda que desde a assinatura do acordo de paz, em novembro de 2016, "o desarmamento ingênuo dos guerrilheiros" não impediu o assassinato de líderes sociais e ex-guerrilheiros e culpou o Estado por não cumprir a sua parte do pacto. Em outras ocasiões, o guerrilheiro já havia afirmado que o abandono das armas fora "um erro".

"Em dois anos, mais de 500 líderes do movimento social foram mortos e 150 guerrilheiros já morreram em meio à indiferença e indolência do Estado", diz ele. "Tudo isso, a armadilha, a traição e a deslealdade, a modificação unilateral do texto do acordo, a quebra de compromissos por parte do Estado e a insegurança jurídica nos forçaram a voltar para a montanha".

No final do manifesto lido por Márquez, Santrich, sobre quem pesa um pedido de extradição para os Estados Unidos, intervém para gritar "Viva a Farc-EP", ao que o restante do grupo responde com uma "Vida longa!" .

Na quarta-feira, 28, a Fundação para a Paz e Reconciliação havia alertado em um relatório apresentado em Bogotá que os grupos dissidentes das Farc estavam em um processo de "banditismo" sem caráter político e que ex-líderes guerrilheiros estavam se reunindo e poderiam formar um novo grupo armado no próximo ano.

"A informação que temos é que os dissidentes políticos e armados estão se unindo. Isso dá a possibilidade e o risco que se forme na Colômbia no ano que vem um novo grupo guerrilheiro que não seja o ELN", disse o diretor do Fundação, León Valencia.

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