Artigo

Fotografias jornalísticas como traços

Notas preliminares para leitura de recortes visuais do mundo

Diogo Azoubel* / Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23
Afghan Girl (1984), por Steve McCurry. Esse retrato de Sharbat Gula (ou Sharbat Bibi) foi originalmente veiculado na capa da revista National Geographic
Afghan Girl (1984), por Steve McCurry. Esse retrato de Sharbat Gula (ou Sharbat Bibi) foi originalmente veiculado na capa da revista National Geographic (fotografia)

São Luís - A incorporação da fotografia à práxis jornalística modificou o regime de visibilidade de uma época, especialmente a partir da cobertura da II Guerra. Em outras palavras, da tradução de fatos e fenômenos em estruturas verbais à sua tradução imagética é possível perceber o salto dado no ato de contar o mundo periodicamente em jornais e revistas, por exemplo.

Entretanto, a imagem já vinha sendo usada como recurso ilustrativo – ainda que configurada diversamente em cada país –, mas nunca antes com a mesma precisão mimética. E nesse ponto é que reside e resiste a ideia de que fotografias podem ser percebidas como espelhos da realidade, equívoco há muito superado.

Fotografias não podem mentir, embora mentirosos possam fotografar, alerta o pesquisador Boris Kossoy sobre um detalhe que, de tão básico, pode passar despercebido. Tanto quanto os textos verbais, os textos visuais técnicos, como a fotografia, não são espelhos, mas recortes, apropriações em um ir e vir de processos de transcriação de um referente.

Se é assim, por que insistir em tal ideia? Nestes tempos de colapso das estruturas sociais vigentes, a imagem fotográfica tem sido usada como argumento para justificar mentiras. As “releituras” de um m mesmo referente – ou seja, o objeto registrado – são conscientemente alardeadas como provas inequívocas de uma sociedade no caos.

No campo político isso é ainda mais cristalino. A imagem, assim, e por mais distópica que possa parecer, pode ser distribuída para que atue em prol da confirmação ou negação das verdades que se queira compartilhar, inclusive por aplicativos de troca de mensagens. Em comum, todas elas obedecem única e exclusivamente à lógica passional de seus modificadores.

A partir da modificação de particular registro fotográfico, por exemplo, é que se desdobram suas infinitas “versões”, como em “Afghan Girl” (1984). Perde-se, assim, a ideia de traço, segundo a qual da superfície fotográfica podem-se desprender elementos, pistas para indagação do que quer que se deseje aprofundar de sua narrativa específica.

São esses mesmos traços que conduzem o olhar de quem os lê para fora do quadro estabelecido. Das caricaturas criadas, dos simulacros, à sua decodificação compromete-se porém o próprio referente pela mensagem. Em outras palavras, nas múltiplas camadas transcriadas umas sobre as outras já não os encontramos com tanta fluidez.

Tal qual em um texto ficcional, faz-se necessário por à prova os elementos da narrativa que a nós se apresenta – sobretudo quando construída sob a égide do jornalismo – para desviar da armadilha de tomar uma mínima parte que se assemelhe a ideia que temos de verdade como o todo de um referente.

Acontece, porém, que a despeito do crescente número de atrizes e atores sociais capazes de fotografar e de editar tais recortes – sobretudo com o avanço e barateamento dos dispositivos técnicos, cada vez mais portáteis e poderosos – poucas(os) estão verdadeiramente habilitadas(os) para leitura de imagens em profundidade.

Desbloqueie seu smartphone e em poucos toques você será capaz de encontrar aplicativos planejados para fazer isso automaticamente: suprimir traço qualquer que reste do objeto dito real sob pretexto de melhor traduzir o mundo. Adicionam-se cores, suprimem-se outras, inserem-se elementos visuais, simulam-se situações e mais, muito mais.

A pensadora estadunidense Susan Sontag (1933-2004) afirmou que fotografias jornalísticas podem dar a conhecer realidades daquilo que preferimos desconhecer, estejam elas distantes ou não. Nada mais atual, ainda que estejamos falando de uma realidade detalhadamente montada e servil, criada para atender interesses cada vez mais restritivos.

Dessa forma, estamos diante do duplo desafio que é não apenas registrar o mundo em recortes fotográficos aos quais ouso me referir como responsáveis, mas também de aprender a decodificá-los a partir da tomada de postura crítica sobre sua própria natureza constitutiva. Afinal, por mais fiel que possa ser ao seu referente, uma fotografia jamais será a realidade.

Um adequado passo preliminar é, justamente, reconhecer que nós, enquanto sociedade, carecemos de um processo de alfabetização visual que se faz mais e mais urgente com o passar do tempo. É fato que se conhecimento é poder, como nos alertou Michel Foucault (1926-1984), precisaremos, no mínimo, reconhecer quando estivermos diante dele.

*Diogo Azoubel é professor pesquisador da Secretaria de Estado da Educação do Maranhão (Seduc-MA). É mestre em Comunicação e Cultura, doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulos (COS | PUC-SP) e autor de “Narrativas Fotojornalísticas I: matizes, objetos, sujeitos” (Letramento, 2019). Contato: diogoazoubel@gmail.com

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