Artigo

Cachorros, formigas e cágados

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23

Bingo, um cachorro de Timon, MA, deu certa vez uma leve dentada em um vizinho. De nada adiantaram os incontáveis pedidos às autoridades, contra sua prisão, pois ele foi recolhido ao centro de controle de zoonoses da cidade. Lá ele viveu sério conflito existencial, nascido da diferença entre a natureza puramente canina de seus companheiros de infortúnio e a sua própria, humana. Desde a proclamação por Rogério Magri, ministro do Trabalho do governo Collor, acerca de Orca, sua cadela, de que “cachorro também é humano” a questão “restou pacificada”, como no dizer dos operadores do Direito. Sim, cachorro também é humano. Mais do que muitos cachorros desumanos de apenas duas patas.

Fizeram com Bingo uma cachorrada. Ele permaneceu confinado sem formação de culpa e sem acusação formal, até que, meses depois, atendendo aos apelos de sua dona, o Tribunal de Justiça do Maranhão mandou o juiz libertá-lo, fazendo prevalecer a justiça humana para um humano injustiçado, embora na pele ou nos dentes de Bingo.

Mas esse negócio de animal às voltas com demandas judiciais não é novo aqui. Vejam o processo das formigas, do início do século XVIII. Os capuchinhos acusaram formalmente, perante o juízo eclesiástico, os pobres insetos de furtarem alimento da despensa do convento de Santo Antônio e de afastarem “a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava ruínas”, nas palavras do padre Manuel Bernardes na Nova floresta.

As formigas passaram a viver uma vida de cachorro. Nem por isso deixaram de ser tratadas como gente. João Lisboa transcreve uma certidão do escrivão José Guntardo de Beckmanns (escrito assim mesmo). “[...] na sua cerca citei as formigas em sua própria pessoa [...] lendo-lhes tudo de verbo ad verbum [...]”. Disseram as “rés Formigas” através de seu curador ad litem, isto é, no processo, que sendo necessário, provariam que as testemunhas dos frades não eram confiáveis.

O caso de Bingo teve um final feliz. Não se conhece, contudo, o desfecho do das formigas, apesar do padre Bernardes ter feito referência em 1706 a uma decisão final. O feito se arrastou até pelo menos 1713, tramitando da mesma forma como os de hoje, a passos de humano cágado. O juiz teria determinando aos frades a marcação “dentro de sua cerca [de] sítio competente para a vivenda das formigas, e que elas sob pena de excomunhão mudassem logo de habitação”.

Faz alguns anos, o STF pretendeu manter a tradição de dar humana atenção aos humanos animais, porquanto pronunciou-se sobre a morte da cadela mineira Pretinha. Ela foi recolhida pela prefeitura de Belo-Horizonte e sacrificada antes do prazo legal. A sua dona deu início a várias ações nos tribunais. Recurso vai, recurso vem, a demanda acabou no Tribunal, mas não sei como a história terminou nem se já terminou.

Como Pretinha não era uma besta de carga, ninguém poderia dizer que a história era uma besteira ou que besta é quem acredita na justiça. Pensando bem, a apreciação pelo STF é uma inequívoca esperança para o formigueiro humano de milhares de brasileiros que esperam alguma decisão sobre ações de seu interesse. Eles haverão de achar que, se os cachorros são atendidos com tanta boa vontade, então não haverá razão para os homens, de quem aqueles são os melhores amigos, não recebam o mesmo tratamento pela justiça. Neste caso, toda a ansiedade de hoje entre os demandantes humanos desapareceria e a nação viveria em paz e felicidade eternas.

Lino Raposo Moreira

PhD, Economista, membro da Academia Maranhense de Letras

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