Artigo

O escritor político*

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23

Necessariamente o político ou gestor público, seja na esfera específica de quaisquer poder (executivo, legislativo e judiciário) não é um mau escritor ou escritor menor. Na mais das vezes, visto pelo viés do preconceito, da indiferença, da ignorância ou mesmo do despeito e da má vontade, quando não da pura mistificação ou da atitude simplesmente sofismável, o escritor tende a sofrer os efeitos de uma recepção inadequada, de uma equívoca apreciação e de um julgamento depreciativo, ora por parte do público, ora por parte mesmo da crítica especializada.

Insisto: uma coisa não tem obviamente nada a ver com a outra! O escritor, dedicando-se naturalmente à arte de escrever, seja ficção, poesia, memórias, crítica, ensaio etc., pode cumular tal tarefa com outras de diversa natureza. Aliás, este me parece um traço típico da tradição literária brasileira. Em geral, nossos escritores atuam simultaneamente como jornalistas, professores, publicitários, empresários, curadores, profissionais liberais, gestores públicos, juízes, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidentes, entre tantos outros encargos, em certos aspectos sem nenhuma vinculação com o ato de escrever, e escrever sobretudo literariamente.

Vou dar um exemplo! No universo da literatura brasileira, José Sarney me parece o caso mais emblemático. Como político, exerceu quase todos os cargos, quer no Executivo, quer no Legislativo, passando pelo poder nos cargos de deputado estadual, governador do Maranhão, deputado federal, senador e presidente da República. Não obstante, premido pelas exigências contínuas e cansativas do exercício político e pelos imperativos essenciais da gestão pública, nunca descurou de seu compromisso para com a vocação literária, tendo-se voltado, paralelamente, aos desafios inerentes ao poder político e administrativo, para os sortilégios da escrita literária, para o ato solitário de escrever, para essa “guerra sem testemunhas”, na pertinente expressão de Osman Lins.

Ficcionista, autor de contos e romances, poeta e ensaísta, José Sarney é detentor de uma obra relativamente vasta e variada, caracterizada principalmente por um cuidado e um zelo rigorosamente inventivos em relação à linguagem, ao mesmo tempo em que faz dessa operação estética dos recursos estilísticos uma forma de expressão em que motivos regionais transcendem o mero pitoresco e ganham estatuto universal, a exemplo do que ocorre com os grandes escritores nordestinos. Um Graciliano Ramos, um Jorge Amado, um José Lins do Rego, um Ariano Suassuna, só para citar os mais conhecidos. Nessa direção, tanto sua poesia quanto sua ficção incorporam aquele sentido humano, profundamente humano, que torna singulares e ao mesmo tempo simbólicos os seres e as coisas do espaço regional. Acerca de sua lírica, escreve o crítico Assis Brasil, em A poesia maranhense no século XX (Sioge/Imago, 1994): “(...) com vida tão atribulada, é de admirar a placidez e leveza de seus poemas, linguagem emblemática, levando a nostálgica lembrança do interior e de seu passado, quando desfilam coisas, bichos, rios, plantas, enfim, a vida do homem sensível, que faz parte de sua outra biografia.”

O ensaísta português, João Gaspar Simões, por sua vez, em prefácio à edição de Maribondos de fogo (Siciliano, 2001), num cotejo comparativo entre o lirismo lusitano, segundo seu entendimento, mais centrado no eu, e o brasileiro, mais voltado para o outro, conclui seu pequeno ensaio, afirmando: “(...) neste claro poeta do Brasil se nos depara um eu lírico não à maneira lusíada - essencialmente subjetivo -, mas um eu lírico de propensões objetivas, digamos, esse eu entre lírico e dramático, que os poetas brasileiros, agora, mais do que nunca, estão, finalmente, a fazer seu e bem seu.”

Companheiro de geração de Bandeira Tribuzi - português que trouxe as novidades modernistas da Europa para São Luís -, Ferreira Gullar, Lago Burnett, Nascimento de Moraes Filho, Nauro Machado e Lucy Teixeira, nomes responsáveis pela renovação do movimento literário no Maranhão, sobretudo através do Centro Cultural Gonçalves Dias e da revista de arte, A Ilha, José Sarney é daqueles que merecem ocupar cadeira na Academia Brasileira de Letras, não pelo subterfúgio de sua posição política, mas evidentemente, pelo talento e valor literário que possui. Quem quiser conferir, que leia, entregue à gratuidade do espírito de recepção e, principalmente, desarmado dos pré-conceitos e do arrivismo político-ideológico, obras como A canção inicial, O norte das águas, Contos escolhidos e, sobretudo, os romances O dono do mar e Saraminda.

Nessa mesma perspectiva temática, poderia ainda refletir, no sentido de ilustrar e robustecer meu pensamento. Escritores como Joaquim Nabuco, Carlos Lacerda, Mário Palmério e os paraibanos José Américo de Almeida, Ivan Bichara Sobreira e Ernani Sátyro.

Hildeberto Barbosa Filho**

**Professor-doutor da UFPB, poeta e crítico literário, membro da Academia Paraibana de Letras

*Publicado in Contraponto B-7, João Pessoa/PB: 22 a 26 de junho de 2012

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