Poesia

Poesia sem peias ou meio termo

Há algo aqui além de toda a poesia já praticada no mundo. Nauro ultrapassa qualquer conceito conhecido da estética humana. Não há nenhuma forma de servidão nos versos que seu gênio nos empresta

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23
O poeta Nauro Machado
O poeta Nauro Machado (Nauro Machado )

São Luís - Ele não transige, não faz concessões poéticas a escolas ou métodos, a modismos ou intenções, nem mesmo quando define um modo de vida: “... seja Deus a loucura que ao meu duplo / fosse somente quem enlouqueci / após fazer-me Nele, aonde supro / minha existência de talvez mais se.”

Existência de talvez mais se... Não há dúvidas. É uma matemática de malditos, é a soma de todas as desesperanças possíveis e imagináveis da condição humana a que fomos relegados nos guetos e biombos desta América Latina. Não tenho notícias de poesia tão penetrante, quase a transformar nossas veias em charcos. Charcos de medo, de tortura, de contemplação embasbacada diante de um mundo a que fomos atirados sem consulta prévia e de um Deus que não nos explica suas decisões. Cada um destes sonetos é quase um romance onde se engalfinham seres degenerados, desassistidos a existir no limbo, personagens lassos de Hugo, Dostoievisk, Graciliano, Allan Poe, Maugham, Steinbeck, Gide, personagens fluidos, góticos e, no entanto, avariados: “eu me coloro enfim de puídos fatos / e me unifico múltiplo no vário / para o cadáver vivo em que engravato / os dias e as noites sobre o meu sudário.”

Nada há de inconcluso nesta poesia. Tecnicamente, a mim que às vezes abomino o tecnicismo exagerado, me parece perfeita. As imagens, eu sei, não são simples imagens, são pura vivência. Nenhum poeta conseguiu com tanta precisão ser o mundo e ser-se a si mesmo ao mesmo tempo. Quem, por exemplo, mesmo que pilote um jumento, alheio aos acontecimentos de suas entranhas inacessíveis, já não sentiu o bombardeio sintático destes versos: “Quisera também eu, como quisera, / para o inacontecido que me espera, / passar-me todo e desacontecer.”

É uma poesia sem peias, sem meio termo, cheirando a suicídio o que, afinal, é a própria gênese de um povo que enfrenta fome, desilusão política, fúria genital mal resolvida, perturbações, pesadelos vivos, sentimentos lassos que escorrem da poesia que, assim tão virulenta, desnuda a frágil vida abissal do ser humano e vai além, coloca-nos reais, rebotalhos de uma sociedade em que a minoria tem uma perspectiva de vida assegurada, mas o todo pasta , como todos os búfalos, reses e bois amalgamados nos sonetos, vítima de “políticos”, “estadistas” (o grifo é nosso) que o poeta, sabidamente adverso a conquistas burocráticas, prefere execrar como fofões de um carnaval onde o prêmio de folias e estripolias são vidas humanas, vidas que se extinguem entre favelas, palafitas ou, mesmo, no ambiente senil da classe média:

Forjar a máscara como se a vista

fora teu rosto a sua própria máscara,

representada por medíocre artista

tirando do intestino a flor das áscaris.

Atar-se à forma, pútrida e arrivista,

cobrindo a cara com uma outra cara:

eis o político, o néscio estadista,

no picadeiro que lhe ainda mascara.

Ser ou não ser de um Hamlet mesquinho

sem metafísica às borras de um vinho

bebido aos lábios pela vez segunda.

E exceto a tudo que completa a aurora

forjar-se em máscara a cobrir por fora

sua verdadeira face toda imunda.

Nunca me arvorei de ensaísta ou mesmo um mero crítico. Às vezes até julgo que os críticos inventam mais do que sabem. Cabe-me, entretanto, julgar a estupidez desta cidade e deste Estado para com uma poesia que é a única novidade em termos de construção linguística nos nossos dias. É temerário o que vou dizer? Talvez, mas julgo o poeta Nauro Machado como um desses fatos que só acontecem uma vez em cada século no campo das artes e das letras. E o pior é que São Luís não sabe disso, como gostaria de saber Paris, como soube Portugal de Fernando Pessoa, Londres de Lord Byron e Granada de Federico Garcia Lorca.

Se em Granada mataram Federico

e em São Luís me matam tal e qual,

se o animal é um político que é rico

e o homem é um político animal,

voltaremos à Pátria, Frederico,

voltarei à Pátria – ó meu filho – afinal,

liberto do animal e do político,

liberto deles, como um mar sem sal.

É. Um filho torna-se insubstituível para qualquer homem que consegue desengravidar-se diariamente em parto tão complexo como a diuturnidade poética. Mas a liberdade tem que ser assim. É imprescindível que, na medida do possível, estejamos deles “libertos, como um mar sem sal. Entumescido. Eis como me prostrou A rosa blindada. Desarvorado, mas lúcido o bastante para compreender mi-nha própria distonia existencial, diante dos solfejos tão irascíveis, diante da intelectualidade letal que circunscreve a poesia deste moço de São Luís. Algo como o explodir de anjos, como um ritual macabro de arco-íris descolorizados, eis o máximo que me permite a metáfora dizer destes versos. Não é a plúmbea Rosa de alguma poética praticada nos tapetes roxos da vida, ao pé do talão. Não é a falácia da poesia feita com a argamassa de profissionais. É a vida, é pura vida o que se respira em versos como estes: “Velhaco mundo! Teu dedo, Pai, em riste / na minha mão, meu pai, na noite calma: / só peço a Deus morrer do que não existe, / só peço a Deus o aplauso à lama: a palma...”.

E que Deus aplauda todos os que por aqui morrem do que não existe: a solidão gutural dos gênios todos, arremessados contra a bazófia dos que não compreendem, porque só sabem da poesia a palavra articulada, incapazes de musicá-la em sons surdos de Hamlet, em brados intramusculares, como está feito em A rosa blindada.

Nauro múltiplo, Nauro duplo, acometido de personalidades estranhas, instantâneas, zangado com Deus, traídos pelos demônios, cumpre, com nitidez quase apoplética, o desígnio de não permitir-se tergiversar em outros rumos que não o da literatura que ele criou, com um jeito novo de usar a palavra (em prosa e verso) mesmo que para isso tenha que pagar à turba-multa os 30 dinheiros esculpidos pelos Césares e exigidos como paga por não trair-se a si mesmo.

Em A rosa blindada percebe-se a vocação de espectador de todos os males da sociedade, quando revela-se infenso aos distúrbios sofridos pelos trabalhadores brasileiros, inchados e descarnados de tanta autoridade. Ele, poeta, puro poeta, só poeta, não quer bandeiras nem palanques para registrar sua revolta e decepção com a maneira como se movem as engrenagens do mundo. Seu protesto é registrar a dor e discutir com São Luís, discutir com o país, discutir com o mundo:

“Também, cidade, atira pelos muros

trabalhadores que no 1º de maio,

comendo frutos de pegos impuros,

famintos todos: o filho, a mãe, o pai,

bastardo genro e a nora aos seios duros

no ventre flácido, com bucho e paio,

como animal qualquer, são irmãos maduros

para um cachorro, um porco, um sol lacraio.

Também, cidade, atira pelo inverso,

um povo mudo no verbo sem verso,

falando embora a fala que, qual lavra,

cria a lavoura abrindo à fome o talho

por lábios feitos no pus do trabalho

por lábios feitos no chão da palavra.

Espero, entanto, não haver esquecido a violência com que este poeta se engravata por dentro, chegando a regiões da mente a que só alguns poucos eleitos no Olimpo foi dado chegar. Para o poeta não há Natal, não há fraternidade imorredoura, há, isto sim, a febre, a febre incandescente, concentrada e consentânea com os estertores dos que se recusam a respirar. A rosa blindada põe fim aos argumentos todos dos que se iludem cônscios da capacidade de fabricar uma poesia sem sentimento e sem dor:

Em Natal tremem as minhas bochechas.

Em Natal mudam as minhas lembranças,

avara fonte seca às duras queixas,

moeda inútil das desesperanças.

Adulto mundo vil, por que te fechas

como abdômen morto das crianças?

Natal volta sem que sequer te mexas,

sem que sequer te mova o Ser que danças.

Parado é tudo ao próprio movimento,

exceto o sol, a lua, a tudo que é exceto

à condição humana em seu elemento.

Transformar-se, após feito, nem tu o podes!

Descansa feito enfim útero e feto,

descansa, Deus, enquanto não me acodes.

Viva sempre, poeta!

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