Vida Ciência

O gato de Schrödinger

Desde os experimentos quânticos mais simples, a teoria apresenta um enigma: ela sustenta que, estranhamente, a observação influencia o que é observado. E mais: que é impossível a separação entre observador e observado

Antonio José Silva Oliveira / Físico, doutor em Física Atômica e Molecular, pós-doutor em Jornalismo Científico. Professor da UFMA

Atualizada em 11/10/2022 às 12h24

[e-s001]Nesta edição de julho de 2019, a página Vida Ciência chama atenção sobre a estranheza da interpretação da teoria quântica com base na equação de Schrödinger, em um experimento que ficou conhecido como “O gato de Schrödinger”. A teoria quântica é a base teórica e experimental de vários campos da Física e da Química, incluindo a física da matéria condensada, física do estado sólido, física atômica, física molecular, química computacional, química quântica, física de partículas e física nuclear. Os alicerces da mecânica quântica foram estabelecidos durante a primeira metade do século XX por Albert Einstein, Werner Heisenberg, Max Planck, Louis de Broglie, Niels Bohr, Erwin Schrödinger, Max Born, John von Neumann, Paul Dirac, Wolfgang Pauli, Richard Feynman e outros. Alguns aspectos fundamentais da contribuição desses autores ainda são alvo de investigação (https://pt.wikipedia.org/wiki/Mecânica_quantica).

Este artigo é assinado em colaboração com o físico Carlos Cesar Costa, do LCN – Bio do Câmpus da UFMA de Pinheiro. Professor Carlos Cesar tem mestrado em Física e, no momento, está no programa de Doutorado pela UERJ.

Antonio José Silva Oliveira e Carlos Cesar Costa

A doutrina de que o mundo é composto de objetos cuja existência é independente da consciência humana está em conflito com a mecânica quântica e com os fatos estabelecidos pelo experimento"(D’ESPAGNAT, B. The Quantum Theory and Reality. Scientific American, 241, 1979, p. 158).

Há, na crença popular, a ideia de que um bichano é um ser dotado de sete vidas. Mais surpreendente do que isso, só o controverso gato de Schrödinger, que tem a incrível capacidade de estar vivo e morto simultaneamente. Aqui, estamos falando sobre o experimento imaginado pelo físico teórico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961), conhecido por suas contribuições à mecânica quântica, especialmente pela equação que leva o seu nome e pela qual recebeu o Nobel de Física em 1933.

Erwin Schrödinger elaborou um experimento para destacar os limites da “Interpretação de Copenhague” quando aplicado a situações práticas, bem como para mostrar que a teoria quântica não é só estranha, como também absurda. No entanto, essa teoria funciona tão bem que os físicos desconsideraram o absurdo. Ainda assim, nos dias de hoje, a história do gato de Schrödinger ressoa alto.

Desenvolvida no começo do século XX para explicar fenômenos microscópicos, a mecânica quântica é a teoria mais testada e mais bem-sucedida de toda a ciência, apesar de sua descrição de mundo ser em termos de probabilidades e incertezas. Nem uma única de suas previsões jamais se mostrou errada. Além de seu sucesso notável, seus resultados práticos estão presentes em um terço da nossa economia. Todos os produtos eletroeletrônicos são fundamentados em sua teoria, como: laser, transistor, imagens por ressonância magnética, circuitos integrados de smartphones, PCs, TVs, nanociência, entre outros. No entanto, a teoria exibe um enigma: ela nos diz que a realidade física é criada pelo “ato de observar”.

Em setembro de 1927, em Como, Itália, durante o Congresso Internacional de Física, realizado em comemoração ao centenário da morte de Alessandro Volta (1745 – 1827), o físico dinamarquês Niels Bohr (1885 – 1962), pela primeira vez, apresentou ao público sua formulação do princípio da complementaridade¹. Com isso, Bohr tentou explicar o sentido físico da mecânica quântica. Naquilo que ficou conhecido como a interpretação de Copenhague, combinou o princípio da incerteza de Heisenberg² à equação de onda de Schrödinger para explicar como a intervenção de um observador altera o resultado da experiência, de modo que poderá acontecer fenômeno que nunca podemos imaginar.

A busca pela compreensão do significado da mecânica quântica liderada por Niels Bohr, a partir de 1927, levou a uma ruptura na unidade de pensamento entre os físicos, conforme salienta o físico teórico e filósofo da ciência — o francês Bernard d'Espagnat (1921 – 2015): “Rapidamente se tornou o polo de todas as discussões sobre o significado da mecânica quântica, dividindo o conjunto de seus pais fundadores. Max Planck, Erwin Schrödinger, Albert Einstein e Louis de Broglie tinham o pensamento contrário; já Werner Heisenberg, Wolfgang Pauli, Max Born e Paul Dirac a aceitavam mais ou menos de bom grado”.

Para revelar quão ridícula era a interpretação de Copenhague da mecânica quântica, Erwin Schrödinger idealizou mentalmente um experimento, no qual escolheu acertadamente um gato como estudo de caso. Imaginan­do-o encaixotado por certo período com um frasco de veneno mortal, dentro de uma caixa. Ele argumentou que não fazia sentido pensar em um animal real, como uma nuvem de probabilidade, simplesmente por carecermos de conhecimento sobre o que acontece.

A proposta de Niels Bohr abor­da a interpretação de Copenhague da mecânica quântica, na qual sistemas quânticos são obscuros e indeterminados até que um observador decida qual qualidade do seu experimento deseja medir.

A luz, por exemplo, é tanto partícula quanto onda, até que decidamos que forma ou característica se quer observar — só então ela adota essa forma ou característica. Essa nova abordagem revolucionária para fenômenos do mundo quântico impressionou muitos físicos, mas os fãs mais arraigados da abordagem da função de onda não embarcaram. Erwin Schrödinger e Albert Einstein permaneceram à margem.

Então, em 1935, Schrödinger tentou ridicularizar a ideia de Bohr sobre uma nuvem probabilística etérea, ao publicar uma situação hipotética que ilustrava a natureza contraintuitiva do colapso de funções de onda e da influência do observador. Albert Einstein fez o mesmo, com seu artigo sobre o paradoxo EPR (Einstein-Podolsky-Rosen), que dava pistas sobre correlações de longa distância implausíveis.

[e-s001]A história do gato na caixa
Desde os experimentos quânticos mais simples, a teoria apresenta um enigma: ela sustenta que, estranhamente, a observação influencia o que é observado. E mais: que é impossível a separação entre observador e observado.

Para ilustrar os seus propósitos, Schrödinger inventou uma experiência de pensamento, destinado a tornar manifesto, por meio de uma situação desconcertante, os aspectos paradoxais de uma interpretação ingênua do formalismo quântico. Imaginemos uma caixa e, no seu interior, um gato. Nesse caso, o gato de Schrödinger juntamente com uma ampola de um gás letal. Felizmente, para a reputação de Schrödinger, no seio da sociedade protetora de animais, nenhum bichano foi utilizado co­mo cobaia.

Imaginemos, também, que, den­tro da caixa, possa haver material radioativo e um aparelho que detecte a emissão de uma partícula que um átomo radioativo emite quando se desintegra. Acontece que o momento exato da desintegração radioativa de um átomo não pode ser conhecido precisamente. A mecânica quântica a descreve, com efeito, como um processo espontâneo, sem explicação causal. Ela não nos fornece nenhuma informação sobre o momento exato em que essa desintegração vai ocorrer, independentemente de qualquer que seja o conhecimento que se tenha do átomo e de sua história passada. Ela apenas nos permite calcular a probabilidade de o átomo se desintegrar no nanossegundo ou no segundo que se segue.

Acrescentemos a tudo isso um dispositivo concebido de tal forma que, se a emissão da partícula resultante da desintegração ocorrer, acionará um martelo que baterá sobre a ampola que contém o gás letal, quebrando-a. Nesse caso, o gás espalha-se de imediato pelo interior da caixa, e o gato morre, expirando um último miau. Em contrapartida, se a emissão da partícula não ocorrer (porque o átomo não se desintegrou), o martelo permanecerá bloqueado, a ampola permanecerá intacta, e o gato terá sua vida preservada. Finalmente, depois de termos instalados todos estes aparelhos, fechemos a caixa.

No nosso contexto, é possível calcular a probabilidade de um átomo se desintegrar (e, portanto, de o gato aparecer morto) no caso de se fazerem medições sobre ele. O cálculo faz-se com base na função de onda do sistema, cuja evolução no tempo é determinada pela equação de Schrödinger.

Se seguirmos o formalismo da mecânica quântica, dado que o resultado da experiência não foi observado (a caixa não foi aberta), o sistema será descrito por uma função de onda que sobrepõe os estados “gato morto” e “gato vivo”. Ou seja, o formalismo descreve o gato como num estado incerto, nem morto e nem vivo, o que é, sem sombra de dúvida, uma situação existencial difícil de conceber na vida cotidiana. Schrödinger concluía de tudo isso que o formalismo quântico se tornava absurdo quando aplicado a objetos complexos.

Para a solução do paradoxo existencial do gato de Schrödinger na caixa, podemos optar por uma das duas questões a seguir: (I) o destino do gato será selado no ato de se observar e, neste caso, o de abrir a caixa e observar. Assim, a realidade do gato será definida pelo ato da observação e (II) o estado gato morto + gato vivo não pode ser observado “no estado”. Portanto, só nos resta o conforto interpretativo da última proposição tractariana de Wittgenstein: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”.

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