Especial / O Estado

Bodegas, mercearias ou tendinhas: as peculiaridades das quitandas

Estabelecimentos de características singulares, apesar do incremento de redes de supermercados, ainda sobrevivem com a simpatia dos donos e a fidelidade dos clientes

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h24
Quitanda de Seu João onde ainda há venda a retalho e fiado
Quitanda de Seu João onde ainda há venda a retalho e fiado

Armazém, baiuca, barraca, birosca, bitaca, bodega, botequim, mercearia, taberna, tendinha, venda. Sinônimos aceitos e, dependendo das características regionais, usados para se referir às conhecidas popularmente em São Luís como quitandas. Os estabelecimentos comerciais de características peculiares, apesar do fomento e incremento de redes de supermercados na cidade, ainda sobrevivem, graças à simpatia dos donos e à fidelidade dos clientes, que não perdem o hábito de negociar o famoso “fiado” ou pedir aquele produto ‘a retalho’ (em partes).

Na capital maranhense, de acordo com o artigo do arquiteto e pesquisador, Ronald Almeida, intitulado “Quitandas – Bares Tradicionais: Microcosmos da cultura popular no comércio do Centro Histórico de São Luís do Maranhão. Uma breve provocação”, o surgimento destes estabelecimentos datam ainda dos séculos XVIII e XIX, com o desenvolvimento da cultura de monetarização e uso mais comum e eficaz da moeda corrente.

Nessa época, uma prática ain­da recorrente dos períodos anteriores começou a perder força: o chamado escambo ou simples tro­ca de produtos. O processo de utilização de moeda corrente fez valer a cultura de “quem tem mais pode mais”. Daí, os comerciantes iniciaram, de fato, o estabelecimento de preços a produtos, em especial, do gênero alimentício.

Esses pontos, que mais tarde seriam conhecidos como quitandas, tiveram como primeiras versões estruturas anexas a imóveis. “As pessoas começaram a consolidar este tipo de estabelecimento nos terraços de suas casas ou em estruturas auxiliares dos compartimentos comuns da casa. Era uma forma de otimizar o uso dos imóveis e, ao mesmo tempo, uma nova forma de ganho de renda”, disse Ronald Almeida.

A partir do século XIX, estabeleceu-se a cultura quitandeira mais forte. No Centro Histórico ou na região central da capital, as quitandas passaram a estabelecer-se. Em outras capitais, estes comércios também se tornaram uma praxe e, dependendo da característica regional, receberam nomes específicos em cada cidade ou estado.

Desde os primeiros registros de quitandas, os donos tiveram como preocupação a revenda de alimentos, como pão e carne. Em meados do século XX, com o crescimento urbano da cidade e a formação e consolidação de bairros, estas quitadas passaram a ser estabelecidas nesses locais.

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Células de humanismo
Além de espaços em que o cliente teria acesso a produtos, em especial, voltados para a limpeza e alimentação, as quitandas – desde a origem – também foram e são ambientes de formação social. O pesquisador Ronald Almeida dá a essas unidades comerciais uma definição interessante: células de humanismo.

Para o pesquisador, os balcões das quitandas são locais de discus­são política, comportamental e, tempos mais tarde, esportiva. “A quitanda, por mais modesta que seja no universo único de um bairro popular, é uma célula de humanismo, é o ponto focal da rádio-povo e antena de difusão das mais amenas e das mais virulentas fofocas. Há sempre nesses pequenos comércios especialistas nesse mister, os tais fofoqueiros de plantão, zelosos e ávidos guardiões da vida alheia”, disse.

Ao visitar algumas das quitandas do Centro, O Estado percebeu que, até hoje, ainda são espaços para integração entre as pessoas. É no balcão de uma quitanda que se pode, por exemplo, conversar com estranhos e entrar na conversa de outros grupos “sem qualquer cerimônia” ou pedido de autorização especial.

Segundo Ronald Almeida, as quitandas são ainda o contraponto de uma sociedade que sofre com a cultura desenfreada do consumismo absoluto. “O ambiente peculiar das quitandas ameniza o sentimento de solidão que muitos sofrem nesse mundo atual, em que predomina a cultura do consumismo patológico em shopping centers e supermercados e a alienação dos reality shows”, afirmou.

[e-s001]VANTAGEM DA QUITANDA

“Moço, me dê por favor uma dose de azeite”. Este foi um pedido de uma cliente na quitanda do seu João, que, desde 1976, pertence ao comerciante João Carvalho, nascido em Vargem Grande (MA) e que, muito novo, veio à capital maranhense para estabelecer renda com o pai, o “velho” Rubens Carvalho. Este tipo de venda que possibilita a negociação de uma dose de um produto que, em tese, somente pode ser revendido em quantidade única faz da quitanda um lugar único.

A dose de azeite faz parte de um tipo de compra que se chama coloquialmente como “venda a retalho”, ou parte que se tira para se revender. Variados produtos também são negociados desta forma, como manteiga, ovo, queijo e outros.

Os quitandeiros – como são chamados os donos deste tipo de comércio –, também para fidelizar seus consumidores, adotaram há mais de dois séculos uma forma diferente de pagamento que, até hoje, é objeto de ironias, o ‘fiado’. O famoso “Fiado só amanhã” surgiu dos quitandeiros que, insatisfeitos com a fama ruim dos “caloteiros”, fixaram tal mensagem. No entanto, há quitandas que ainda se cercam de clientes fiéis. E geram documentos que somente são vistos entre os quitandeiros. Não há um deles (ou delas) que não adote a chamada “caderneta de fiado”. É aquele caderninho em que, na linha mais ao centro, é escrito o nome do cliente. Nas linhas inferiores, constam os saldos dos valores das vendas representando os produtos retirados, sem necessariamente o pagamento imediato. Ao fim do mês ou a partir de cada anúncio de pagamento do poder público, já que a maior parte dos clientes depende da verba administrativa, o quitandeiro tem a missão de “cobrar” cada comprador.

Para Ronald Almeida, em uma cidade onde a maior parte da população economicamente ativa é composta por funcionários “públicos mal remunerados” e biscateiros [os biqueiros ou trabalhadores sem carteira assinada que vivem de serviços esporádicos] a disponibilidade do dinheiro em espécie é uma raridade. “Como o quitandeiro revende, em sua maioria, produtos de necessidade imediata, não há como esperar o pagamento para que ele receba seu valor cobrado. Foi necessário pensar em outra forma de quitação para que o mercado sobrevivesse”, disse.

João Carvalho, da quitanda do seu João, trata a caderneta de fiado como um cartão de crédito “sem maquininha”. Para ele, o caderno com as anotações é como se fosse a máquina de crédito. “Aqui temos o controle de todos os gastos. E com uma segurança maior, já que a máquina pode pifar. Pode faltar energia”, disse.

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