Artigo

Pontos de fuga

Atualizada em 11/10/2022 às 12h25

Caminhos são coisas misteriosas de ver-se, por vezes, corcoveiam em sinuosas curvas e, afinando-se, perdem-se no horizonte; por vezes metem-se por cerrados matagais, fugindo breve à nossa vista. Aonde vão? Chegam ao seu final ou imbricam-se com outros caminhos numa rede interminável, dando voltas ao mundo? Curioso, estão sempre partindo. Não sei o porquê. Só sei que são caminhos de ida, nunca de retorno.

Ah, o mistério e o fascínio dos caminhos. Quando menina, não resistia a um quadro, figura ou sugestão que representasse algo semelhante. Desejava pular a barreira da dimensão e mergulhar neles, como uma Mary Poppins, e no seu interior, explorar um mundo paralelo, onde as coisas tornassem aos significados dos sonhos. A essa busca, à curiosidade do desconhecido, à exploração, misturava-se o desejo de fuga, que creio inerente a todos que sonham.

Outro símbolo de liberdade são navios ancorados ao largo. Sugerem as viagens e aventuras pelos caminhos de água. Essa busca de rotas para lugares desconhecidos, ampliando o mundo e revelando mistérios começou com o desejo de superação do ser humano, alimentou as conversas ao redor do fogo e gerou as grandes epopeias marítimas, Odisseia, Eneida, Os Lusíadas. Quem viaja tem muito que contar, diz-se.

Aqui, na Ilha de Upaon-Açu, temos vasto material para o imaginário, navios em quantidade ponteiam nosso mar interior, a Baía de São Marcos. Atire a primeira pedra aquele que, ao passar pela orla, não tem o impulso de contar os navios ancorados. Confesso que já estacionei, mais de uma vez, na Litorânea, só para conferir apropriadamente o número deles. Conto e reconto. É quase uma manifestação de tok.

E fico satisfeita quando são muitos. Se sei que um número crescente de naves no porto não significa aumento de riqueza para nosso Estado, progresso, etc. etc? Sei, sim. Pegamos carona na diminuição do volume de produção das usinas mineiras, após a tragédia das barragens de Brumadinho, Mariana e coirmãs. Os navios ficam enfileirados porque não há berços suficientes para recebê-los.

Mas impressiona a quantidade, são graneleiros imensos, petroleiros, cargueiros de ferro negros de barra vermelha, guindastes,.. À noite, suas luzes destacam-se no negrume do mar. Há vida lá fora. Dia desses, a quantidade era tal que semelhava uma invasão, Juro que pensei no Dia D, na Normandia. Haja imaginação!

Ao largo da orla, negrejando de pontos sombrios o mare nostrum, estão navios de muita labuta, tripulações rudes de homens calejados, cuja aventura muitas vezes não se alonga além dos arredores dos portos das cidades em que chegam.

Os cargueiros não têm a companhia dos alvos e aerodinâmicos navios de passageiros, de muitos andares, feéricas luzes, Titanics modernos a levar pessoas para o mundo da fantasia. Esses passam, raros, lá no Grande Porto. Mesmo assim, o cenário mexe com o imaginário de muitos. Tem a ver com as nossas raízes e a sedução do desconhecido, o sedentarismo que acomoda e o desejo de aventura, a província e a metrópole. Um ponto de fuga que outros realizam por nós.

Caminhos de terra e de água, quem nunca quis sumir por um deles? Desde criança, como afirmei, alimento esse desejo curioso. È certo que nunca sumi. Mas, de repente - quem sabe? - pode aparecer uma manchete: “anciã desaparece misteriosamente, consta que fugiu de casa”.

Ceres Costa Fernandes

Mestra em Literatura e membro da Academia Maranhense de Letras

E-mail: ceresfernandes@superig.com.br

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