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Barbearia: a arte que já teve seu apogeu, mas venceu a modernidade

De multitarefa há três séculos, ofício passou por transformações, e hoje é uma das profissões mais cobiçadas do mercado estético; tradições são preservadas

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h25
Antônio tem 88 anos e muita história  para contar  na cadeira da sua barbearia
Antônio tem 88 anos e muita história para contar na cadeira da sua barbearia (Antonio barbeiro)

Uma profissão que, ao longo dos séculos, passou por diversas transformações. A função de barbeiro – ao contrário dos tempos modernos – já esteve associada a um profissional que exercia diversos cargos. Alguns deles ligados à saúde e a outros campos de conhecimento. Atualmente, ser barbeiro é entender as mudanças do mercado estético e cobiçar uma das funções mais disputadas do ramo comercial de beleza. Apesar da gana para se tornar um barbeiro “moderno”, alguns profissionais que cortam a barba na tradicional navalha não largam certas tradições.

A história tradicional defende que o ofício de barbeiro remonta à Grécia Antiga. Nomes importantes da filosofia e artes diversas – valorizando conceitos do bom e do belo – se preocupavam com a ordenação dos pelos na altura do rosto. Na maior parte dos casos, pessoas consideradas “servas” dos protagonistas da sociedade eram responsáveis pelos cortes.
Até então, a função ainda não era conhecida com a expressão “barbeiro”, cuja nomenclatura somente é observada em livros mais recentes. Na Idade Média, por exemplo, o barbeiro era uma espécie de confidente e promissor da ideia de ser, para a sociedade, quase um “curandeiro”. Em algumas sociedades, ser barbeiro era entender de medicina e ter outras especialidades associadas à cura.

Séculos mais tarde (XVI e XVII), os barbeiros eram conhecidos como aqueles “profissionais” que, de forma itinerante, percorriam vilas, vilarejos e cidades pequenas oferecendo, além dos serviços de aparo capilar, a famosa “benzedeira” e venda de raízes. Havia quem visse o barbeiro praticamente como um cientista daqueles tempos.

Em alguns casos, incluindo o Brasil, alguns barbeiros chegaram a extrair dentes e a fazer pequenas cirurgias. Décadas mais tarde, os estabelecimentos pioneiros ofertando serviços de barbearia no mundo começaram a surgir.

A proposta destes pontos, ainda de acordo com a versão oficial, era oferecer um local predominantemente masculino, em que as mulheres inclusive eram proibidas de ter acesso. Além de agregação social, as primeiras barbearias foram vistas como unidades de afirmação do homem quanto à sua masculinidade e marcação de superioridade em relação à mulher.

O barbeiro ganha importância
Apesar de antiga, a função de barbeiro somente é valorizada quando os clientes passam a vê-lo não somente como um mero cortador aleatório capilar, e sim como uma pessoa capaz de emoldurar uma bela barba e, assim, dar charme e elegância a quem senta na cadeira tradicional para o corte. Pessoas especializadas em outros ofícios passam a se dedicar ao que, até o início do século XX, ainda estava ligado ao que deveria estar subordinado às classes sociais mais abnegadas.

No Brasil, antes do fim da escravidão, por exemplo, eram os negros os responsáveis em sua maioria pelos cortes de seus senhores. Nem mesmo às mulheres – as súditas – obtinham esta honraria. Na época escravocrata, pelo estatus social, senhores exigiam cortes alinhados e feitos sob classe.

Com o passar deste tempo no Brasil e não à toa, as barbearias ganharam espaço e geraram interesse da clientela. Em São Luís, é possível ainda encontrar barbeiros e barbearias com “cheiro” de história em seus objetos e paredes. O Estado foi atrás de alguns personagens e locais tradicionais.

O barbeiro mais antigo, em atividade
Em 1951, chegava à capital maranhense um até então jovem cheio de sonhos, vindo da cidade de Pinheiro (MA). Sem profissão e entre um bico e outro, coube a Antônio Lima Moraes, um senhor simpático, hoje com 88 anos, ir atrás de uma carreira. Dois anos após chegar a São Luís, já cortava cabelos e fazia barbas no centro da cidade.

Segundo o próprio barbeiro, tudo começou em um estabelecimento na esquina das ruas Afonso Pena e 14 de julho. “Quando comecei, não havia praticamente nada na cidade. Era uma beleza, tudo tranquilo, na santa paz”, disse. O tempo passou e os irmãos de Antônio passaram a trabalhar com ele na mesma sala, no mesmo salão, no mesmo estabelecimento.

Ao fazer a sociedade em família, nem mesmo Antônio acreditou que passaria tanto tempo no ofício: cortando cabelos e barbas. Em um cálculo rápido e auxiliado pelo barbeiro longínquo, estima-se que tenha feito barbas, ao longo de 66 anos de carreira, mais de 137 mil vezes. “Isso considerando que muitos clientes voltavam aqui”, afirmou.

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Mesmo aposentado e com idade avançada, de segunda-feira a sábado, Antônio ainda é visto no Centro, na sala original, cortando com navalha (cuidada com todo o zelo do mundo) as barbas de quem passa por ali. “Para mim, todo cliente é igual, do mais velho ao mais novo. Do que tenha mais dinheiro ao mais humilde”, disse.

No salão, restou apenas uma pequena mesa, onde apoia seus instrumentos de trabalho trazidos em uma sacola de plástico de casa, na Cohab, até o Centro. Também resta ali uma cadeira que, segundo ele, tem mais de meio século. O acessório sofreu uma única reforma, em meados da década de 1970 e ainda é usado para apoiar o corpo dos clientes.

Antes da configuração única de cadeira e mesa, no estabelecimento, havia outros acessórios. “Tinham outras cadeiras e objetos, mas simplesmente me roubaram tudo”, disse. Sem tremor algum nas mãos e com uma habilidade que impressiona, Antônio partiu para o último corte de mais um dia de trabalho como se fosse o primeiro. “Sinto apenas artrose nos joelhos, pelo tempo que passei em pé na minha vida, fazendo barba”, afirmou.

Sobre o futuro, Antônio foi claro. Ele vai permanecer com a mesma rotina, saindo de casa na Cohab para se dirigir até o seu humilde Salão São José, no Centro. “Todos me conhecem aqui. Meus clientes são muito queridos por mim e carinhosos”, disse.

SAIBA MAIS

75 anos de história: o bom atendimento do Salão São Bento

Um estabelecimento fincado no centro de São Luís foi um dos precursores do gênero na região e que até hoje funciona. Fundado por um senhor chamado José Pinheiro (conhecido por C de Chita), o Salão São Bento (que faz referência à cidade da Baixada Maranhense onde nasceu o antigo proprietário), mesmo com simplicidade (antigas cadeiras, instrumentos e sem o glamour dos principais empreendimentos do gênero) ainda mantém uma clientela forte e fiel. Administrado por Antônio, Domingos Carlos e Ferreira Lopes (conhecido por “Seu Lopes”), o estabelecimento desde o começo somente oferece, para os homens, serviços de corte de cabelo (da forma tradicional, ou seja, na tesoura) e de barba na navalha. Com a simpatia do começo, todos os clientes se sentem prestigiados pelo bom atendimento do local. Dentre os clientes que já fizeram barba no antigo ponto, estão o ex-vereador Benedito Pires, que ainda faz corte de barba e cabelo no salão. “É a única coisa que a mulher não sabe fazer melhor do que homem”, disse seu Lopes, ao ser questionado sobre o segredo da boa clientela, apesar da concorrência. O Salão São Bento fica no Mercado Central (em frente a uma loja de importados). E o atendimento ocorre de segunda à sábado, das 8h às 19h. “A gente espera contar com a freguesia de sempre”, disse Domingos Carlos, um dos donos.

Barbearia: local de resenhas, discussões e dos calendários de cunho erótico

Quem nunca foi a uma barbearia e se deparou com uma discussão acerca do futuro político do país ou mesmo de quem é o melhor time do campeonato nacional? Ir a uma barbearia, em especial, nos bairros mais populares é, acima de tudo, uma oportunidade de participar de uma roda de discussões entre uma e outra navalhada. Especialistas entendem que as barbearias, pelo fato de terem surgido como uma oportunidade para que homens em geral estivessem reunidos e em um ambiente favorável a eles, são propícios para este tipo de discussão. Desde os barbeiros, passando pelos clientes, há uma mescla entre cientista político e comentaristas esportivos, discutindo o futuro da presidência, do governo e do time de coração. Além disso, quem nunca adentrou em uma barbearia e não havia grudado na parede aquele calendário de mulher pelada? É outra tradição das barbearias, ou seja, a pose da modelo em trajes (quando existem), digamos, menos tradicionais. Alguns consideram que determinadas barbearias na capital maranhense são como verdadeiros clubes “para o público masculino”. Por óbvio, não há a restrição explicita às mulheres, mas é incomum ver nestes estabelecimentos pessoas do sexo feminino por conta própria acompanhando os esposos e/ou companheiros no reparo da barba.

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