Entre facções militares

Ofensiva de general na Líbia ameaça chance de paz negociada

Comandante que domina o Leste do país e já teve apoio da CIA, da França e da Rússia prometeu capturar Trípoli às vésperas de conferência política convocada pela ONU

Atualizada em 11/10/2022 às 12h25
Imagem divulgada pelo Exército Nacional da Líbia mostra comboio militar rumo à capital do país
Imagem divulgada pelo Exército Nacional da Líbia mostra comboio militar rumo à capital do país (AFP)

TRÍPOLI - Khalifa Haftar, um líder militar que domina o Leste da Líbia e há anos vem prometendo assumir o comando do país, ordenou que as suas tropas avancem sobre a capital do país, Trípoli, controlada por um governo apoiado pela ONU.

A ordem para a ofensiva, que já chegou a 30 quilômetros da cidade, foi dada enquanto o secretário-general das Nações Unidas, António Guterres, estava lá para articular uma solução política entre diferentes forças do país, cujo território está dividido entre diferentes grupos militares desde a queda do ditador Muammar Kadafi, em 2011. O avanço de Haftar pode significar uma nova etapa na guerra civil.

A ofensiva acontece em um momento de aproximação entre as partes e pouco mais de uma semana antes de uma conferência nacional para encontrar uma saída política para a Líbia, convocada pelas Nações Unidas e marcada para o dia 14. Haftar, que nos últimos meses fez importantes conquistas militares, controlando poços de petróleo no Sul do país, parece querer sinalizar que não acredita em negociação ou saída política para o conflito, e que sua ascensão é inevitável.

Guterres deveria viajar para o Leste do país na sexta-feira, 5, onde se encontraria com Haftar. Há relatos ainda não confirmados de que os dois se encontraram. O secretário-geral disse no Twitter que "deixa a Líbia com um coração pesado e muito preocupado", sem menção à reunião. Mais cedo, ele escreveu que gostaria de fazer um “apelo muito forte para que todos os movimentos parem”, acrescentando que “não há solução militar e que só o diálogo interno pode resolver os problemas da Líbia”.

Desde 2014 - três anos depois que uma intervenção capitaneada pela Otan, a aliança militar ocidental, provocou a queda de Kadafi -, a Líbia está dividida entre um governo reconhecido pela ONU, sediado em Trípoli, e um governo rival comandado por Haftar no Leste. A divisão deixou o país em profunda desordem, com milícias rivais competindo por poder. O caos atrofiou a produção de petróleo, encolheu a economia, ofereceu porto seguro a grupos terroristas islâmicos, propiciou o surgimento de milícias paramilitares e transformou a costa do Mediterrâneo em um dos principais pontos de partida de emigrantes da África e do Oriente Médio rumo à Europa.

Haftar, que um dia foi coronel sob Kadafi e, depois de romper com o ditador, foi apoiado pela CIA no final da década de 1980, recebeu vasto suporte do Egito e dos Emirados Árabes Unidos, com a intenção de conter grupos insurgentes islâmicos na Líbia. França e, em menor escala, Rússia também apoiaram o general de 75 anos, muitas vezes comparado a Kadafi por seu perfil autoritário. Em dezembro de 2017, depois de quase três anos de combate, ele tomou a cidade de Bengazi, a segunda maior do país, de milícias islâmicas.

O governo de Trípoli, comandado pelo primeiro-ministro Fayez al-Sarraj, não foi eleito, mas indicado por uma comissão da ONU, que pretendia criar um governo de coalizão, do qual desde o princípio Haftar não aceitou participar. Al-Sarraj hoje conta com a proteção de diversas milícias paramilitares, incluindo grupos islâmicos que controlam Trípoli e às vezes lutam entre si pelas ruas da cidade.

No mês passado, Haftar e al-Sarraj se reuniram em Abu Dhabi, no Catar, para discutir formas de compartilhar o poder. A conferência marcada para o dia 14 de abril, agora incerta, tinha o objetivo proposto pela ONU de estabelecer um acordo que levasse a eleições democráticas capazes de encerrar a instabilidade prolongada no país.

A ofensiva surpresa de Haftar, de acordo com alguns analistas, poderia ser uma aposta para intimidar as milícias que apoiam al-Sarraj. Segundo especialistas ouvidos pelo New York Times, Haftar quer transmitir a sensação de que sua ascensão como o próximo soberano da Líbia é inevitável, forçando os grupos armados a abraçarem o seu autoproclamado Exército Nacional Líbio (ENL), assim como já aconteceu em outras partes do país. Em um vídeo postado na página do Facebook de seu grupo, o general diz que “está nos arredores de Trípoli”, dizendo que suas tropas não devem disparar contra civis nem contra ninguém que entregar as próprias armas.

"Hoje completaremos a nossa marcha. Começaremos em pouco tempo", afirma. "Estamos indo para Trípoli, estamos indo".

Ofensiva

Segundo a Al Jazeera, o ministro do Interior do governo de Trípoli, Fathi Bashagha, disse que a ofensiva de Haftar acontece em um momento de calmaria.

"Por que usar armas e a força para aterrorizar o povo da Líbia, matá-lo, e obrigá-lo a aceitar uma só coisa, que é ser comandado por um ditador militar? O que faz de Haftar um candidato melhor do que outros líbios?"Bashagha disse à emissora. "Se alguém quiser usar a força contra nós, estamos prontos para o sacrifício, mas não desistiremos da democracia que quisemos desde o começo".

Na quinta-feira, 4,as forças de Haftar tomaram Gharyan, a cerca de 80 quilômetros ao sul de Trípoli, após confrontos com aliados de al-Sarraj. O exército do general, contudo, não conseguiu dominar um posto de controle a cerca de 30 quilômetros a Oeste da capital, numa ofensiva que tentava fechar a estrada costeira para a Tunísia. Uma milícia aliada do ENL retirou-se durante a noite, disse um repórter da Reuters.

Enquanto isso, milícias aliadas a al-Sarraj, rotineiramente rivais, parecem ter se unido contra Haftar. Os grupos transferiram caminhonetes equipadas com metralhadoras da cidade costeira de Misrata para Trípoli para defendê-la das forças do general. Segundo o comandante Mohamed Alhudair, 145 soldados da LNA foram tomados como prisioneiros e 60 veículos foram apreendidos em Zawiya.

Preocupação internacional

A pedido da Alemanha, uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU foi convocada para discutir a escalada. Os Estados Unidos, Reino Unido e os antigos apoiadores de Haftar França e Emirados Árabes Unidos emitiram um comunicado conjunto, pedindo a diminuição imediata das tensões. “Nossos governos se opõem a qualquer ação militar na Líbia e responsabilizarão qualquer grupo líbio que levar a um conflito civil”, diz o comunicado.

“Neste momento sensível na transição da Líbia, imposturas militares e ameaças de ações unilaterais podem apenas lançar o país no caos (...). Nós acreditamos firmemente que não há solução militar para o conflito da Líbia”, completa.

A Rússia disse que não estava ajudando as forças de Haftar e que apoia um acordo político negociado, descartando novos confrontos. "A situação deve ser resolvida pacificamente", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.

A Itália, que já dominou colonialmente a Líbia e que fica do outro lado do Mediterrâneo, afirmou que ficou “muito preocupada com a virada dos acontecimentos”, segundo o vice-primeiro-ministro italiano, Matteo Salvini.

"Precisamos jogar água e não gasolina no fogo. Espero que as pessoas, agindo por interesse econômico ou comercial, não estejam procurando uma solução militar, o que seria devastador", disse Salvini.

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