REPERCUSSÃO

Família de menino que teve matrícula impedida recebe apoio

Em reunião realizada na manhã de ontem (18), OAB e Movimento Negro comprometeram-se em buscar capacitação de profissionais da escola para evitar novos casos; família não descarta processo para reparação de indenização

MONALISA BENAVENUTO / O ESTADO

Atualizada em 11/10/2022 às 12h26

Após repercussão do caso do pequeno Felipe Lima, 8 anos - que foi impedido de ser matriculado na Escola Municipal Professora Augusta Maria Costa Melo, no município de São José de Ribamar, por usar cabelo black power -, sua família recebeu apoio da Ordem dos Advogados do Brasil no Maranhão (OAB-MA), que, em reunião realizada na manhã de ontem (18), na sede da instituição, se comprometeu em buscar, na Secretaria Municipal de Educação ribamarense, a capacitação de profissionais da escola para evitar que casos semelhantes voltem a acontecer. Apesar da situação de constrangimento, a família acredita que é possível que a situação possa gerar boas consequências para o sistema educacional.

Fábio Lima, pai de Felipe Lima, ainda se esforça para digerir a situação e minimizar os traumas sofridos pelo filho, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA). “O caso tomou uma dimensão muito maior do que esperávamos. Passou a ser uma briga da sociedade maranhense. Até fora do estado houve comoção com a história do Felipe, e as pessoas estão envolvidas com o caso. Isto, para ele, tem causado um transtorno muito grande. Felipe tem autismo, e esta situação foi recebida por ele com certo espanto. Até hoje ele ainda está chocado”, contou o pai.

Ainda de acordo com Fábio Lima, a família buscará acompanhamento profissional para que a criança possa, novamente, se preparar para retornar aos estudos. “A gente precisa que tudo se acalme um pouco para tratar isso com mais criteriosidade. A educação do nosso filho é um caso fundamental, mas precisamos observar se ficaram sequelas, o que precisa ser feito por um profissional. Só depois de tudo isso iremos reintegrá-lo à vida escolar”, afirmou.

Acompanhado por integrantes do Movimento Negro Unificado (MNU), Lima reuniu-se com membros da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-MA em busca de orientações para a tomada das providências cabíveis a respeito do caso. Entre as indicações, Rafael Silva, presidente da comissão, sugeriu a realização de um encontro com a participação da OAB, MNU, órgãos de São José de Ribamar, assim como a direção da escola Professora Augusta Maria Costa Melo.

“A partir deste caso concreto e específico, vamos buscar diálogo com a Secretaria Municipal de Educação de Ribamar, a própria direção da escola, em parceria ainda com o Movimento Negro Unificado, o Centro de Defesa Padre Marcos Passerini e outras entidades para avaliar de que forma está o sistema de educação pública daquele município quanto à questão de desenvolvimento da negritude e crianças e adolescentes com deficiência, que deve ser um compromisso de todo o sistema educacional”, explicou Rafael Silva.

De acordo com Adomair Ogunbiyi, coordenador estadual do MNU, que há 40 anos atua no cenário nacional em defesa do povo negro, a frequência de casos de violações de direitos, como o sofrido pelo pequeno Felipe Lima, pode ser ainda maior. “As pessoas ignoram, muitas vezes, os seus direitos, e ainda falta coragem para denunciar, pelo receio dos desdobramentos, medo de retaliações que podem advir de uma denúncia como a realizada pelo Fábio, que se dispôs a enfrentar todas estas questões em defesa do filho”, ressaltou.

Para Ogunbiyi, a iniciativa tomada pela família de Felipe Lima com o apoio da OAB e do próprio MNU é essencial para encorajar outras pessoas e evitar que novas ocorrências se repitam em São José de Ribamar e em todo o estado. “Esta mobilização que estamos fazendo é justamente para tentar demover as pessoas de praticarem estas discriminações e, ao mesmo tempo, mobilizar aqueles que são discriminados a reagirem contra a violência racial. Junto à Comissão de Direitos Humanos da OAB e outras instituições, buscaremos fazer com que o município incorpore a implementação das diretrizes curriculares que rezam sobre a questão da inclusão de história e cultura afro brasileira e africana no município, capaz de evitar novos casos de racismo e suas manifestações, principalmente no seio da educação”, esclareceu.

“Para mim, enquanto pai, vou ter o meu direito reparado se nós conseguirmos mudar a realidade à qual tantas crianças são sujeitas”, declarou Fábio Lima, que, a partir de agora, busca, com a esposa, o filho e demais apoiadores, obter um saldo positivo de toda a situação sofrida. “O que sobra disso tudo é que estamos mostrando para certos gestores e para os profissionais que tomam conta das nossas crianças o cuidado que é necessário ter para assegurar os direitos garantidos a elas. Que toda esta comunidade, de acordo com a repercussão que teve, assim que sentir-se desrespeitada, busque os seus direitos”, salientou.

Entenda o caso
Felipe Lima, de 8 anos, teve sua matrícula para o ano letivo de 2019 negada em uma escola pública de ensino fundamental, no município de São José de Ribamar. O motivo? O cabelo crespo e volumoso, em estilo black power já considerado marca do visual do garotinho. O caso foi levado à delegacia pelos pais da criança, Fábio e Joselma Lima.

A mãe da criança havia ido, em fevereiro, à Escola Municipal Professora Augusta Maria Costa Melo, localizada no bairro Vila Olímpica, São José de Ribamar, à procura de uma vaga para o filho estudar. A direção da instituição pediu que a mãe retornasse no dia 12 de março, para efetuar a matrícula da criança.

No referido dia, a mãe foi à escola e levou a criança, com o objetivo de fazê-la conhecer o espaço onde estudaria. “Ao ver a criança, a diretora da escola me disse: ‘Mãezinha, com esse cabelo não pode’. Fiquei perplexa, até ela deixar claro que eu deveria levar o Felipe para cortar o cabelo”, conta Joselma Lima. A diretora, Helena Rita de Sousa, havia feito a exigência, pois o aluno deveria “seguir um padrão que as outras crianças da escola seguiam, de cabelos baixos, estilo social”, em suas palavras, conforme contou a mãe.

A mãe diz que negou o pedido da diretora e que no mesmo momento o seu filho pedia para ela não fazer o corte. “Felipe tem um certo grau de autismo, e é apaixonado pelo seu penteado. Mesmo se um dia eu cogitasse cortar os cabelos do meu filho, não poderia fazer isso de imediato, porque sei o quanto o afetaria”, diz a dona de casa. Segundo ela, a diretora não recuou e disse que essa era uma determinação da Secretaria Municipal de Educação de São José de Ribamar e que a criança só seria matriculada após estar com um corte de cabelo adequado.

Providências legais
A família registrou Boletim de Ocorrência para denunciar o caso junto à delegacia civil. A Secretaria Municipal de Educação de São José de Ribamar informou que um processo administrativo foi aberto para averiguar a denúncia e tomar as providências cabíveis sobre a atitude da gestora da Escola Municipal Professora Augusta Maria Costa Melo. De acordo com o presidente da CDH da OAB, ações podem ser tomadas tanto no campo penal quanto administrativo e cível.

“A apuração penal será feita, inicialmente, pela polícia civil, que, com a conclusão do inquérito, encaminham a denúncia para o Ministério Público ribamarense. No campo administrativo, o processo disciplinar já foi aberto pela Secretaria de Educação de Ribamar. Mas há, também, a possibilidade de processo na área cível, para reparação de indenização por danos morais, que a família pode mover contra o município de Ribamar, que tem responsabilidade objetiva pela conduta da gestora”, explicou.

Apesar de não ser uma prioridade, Fábio Lima não descarta a última opção. “Vamos aguardar o que será feito. Nosso foco é a ação disciplinar, para mudar a postura da gestora e de quem mais repita estes atos. Isto já me deixaria realizado. Mas, se não obtivermos sucesso com esta mobilização, vale a pena tentar outras possibilidades. Vou até o fim. Farei o que for preciso para assegurar os direitos do meu filho”, concluiu.

SAIBA MAIS

Conteúdo programático das escolas
A Constituição brasileira e as convenções nacionais protegem as crianças no exercício de sua identidade negra. Em 2003, foi aprovada a Lei nº 10.639, que exige que estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

O conteúdo programático a que se refere deve incluir estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Nesta mesma lei, foi incluído que no dia 20 de novembro seria comemorado o Dia Nacional da Consciência Negra. A ocasião é dedicada à reflexão sobre a inserção do negro na sociedade brasileira. A data foi escolhida por coincidir com o dia atribuído à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695.

Sistema falho
Discutir o racismo não faz parte de projetos temáticos em 24% das escolas públicas do Brasil, segundo dados mais recentes liberados pelo Censo Escolar, aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com 52 mil diretores de escolas.

O levantamento mostra que em 12 mil delas não existem projetos com a temática do racismo. Quando o assunto é a desigualdade social, esse número aumenta para 40% das escolas. Sobre diversidade religiosa, o número de escolas que não incluem o tema em seus projetos sobe para 52%.

Desde 2003, todas as escolas são obrigadas por lei a ter, no currículo do ensino fundamental e médio, o ensino de história e cultura afro-brasileiras. Em 2008, também incluiu a obrigatoriedade do ensino da cultura indígena nas escolas. Porém, o Brasil não tem mecanismos oficiais para garantir se a lei é cumprida. O último Censo Escolar aplicado é a pesquisa mais atual com dados a respeito do assunto.

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