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Marcos da prosa memorialística russa ganham novas edições

Editora 34 lança dois marcos da prosa memorialística russa, "O rumor do tempo" e "Viagem à Armênia", ambas de Óssip Mandelstam

Atualizada em 11/10/2022 às 12h26

SÃO PAULO - Óssip Mandelstam (1891-1938) é o autor de uma das mais importantes obras poéticas do século XX, admirada por nomes como Joseph Brodsky e Paul Celan. Na Rússia e no Ocidente, gerações de leitores viram na poesia e no destino trágico de Mandelstam um testemunho dos tempos hostis que o poeta chamou de “século-animal”.

Mas também a sua prosa é capaz de conjurar toda uma era da história russa. Em "O rumor do tempo" (1925), Mandelstam mescla as suas memórias de juventude ao ambiente artístico e cultural da São Petersburgo das décadas de 1900 e 1910. Aqui o estilo alterna entre o lírico e o polêmico, e o olhar do jovem arrebatado pela revolução de 1905 é contraposto à ironia do intelectual em conflito com a burocracia soviética. Em "Viagem à Armênia" (1933), desafiando o encargo que recebeu para escrever um relatório sobre a jovem república soviética, o experimento com diferentes gêneros e vozes é levado ainda mais longe, em associações de puro lirismo; não por acaso, é a partir deste texto que Mandelstam quebra o silêncio poético que o acometeu por anos.

Nesta nova edição de dois marcos da prosa memorialística russa, a bela tradução de Paulo Bezerra, agora revista e com novas notas, vem acompanhada de um ensaio, inédito no Brasil, do poeta irlandês Seamus Heaney, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1995.

"O rumor do tempo" e "Viagem à Armênia", de Óssip Mandelstam

Sobre o autor
Óssip Emílievitch Mandelstam nasceu em 1891, em Varsóvia (então parte do Império Russo), numa família judia. Ainda na infância muda-se para São Petersburgo, e entre 1900 e 1907 estuda na prestigiosa Escola Tênichev. Estuda literatura em Heidelberg, na Alemanha, e cursa filosofia na Universidade de São Petersburgo, sem se graduar. Em 1911 Mandelstam se aproxima da Guilda dos Poetas, grupo que publica o livro de estreia de Anna Akhmátova e que daria origem ao movimento acmeísta. Em 1913 publica Pedra, seu primeiro livro de poemas, e o ensaio “O amanhecer do acmeísmo”. Em 1922 lança Tristia, reconhecido como um dos grandes livros da poesia russa, e casa-se com Nadiéjda Kházina, que veio a ser a maior divulgadora de sua obra no Ocidente. Em 1925 publica O rumor do tempo, de prosa memorialística, relançado em 1928 junt o com o relato de viagem Teodósia e a novela A marca egípcia. Nesse mesmo ano, publica uma reunião de toda a sua poesia, Poemas, e um livro de ensaios, Sobre a poesia, e começa a escrever Quarta prosa, mescla de ficção e memorialismo que permaneceu inédita.

Encarregado pelo governo de escrever um relatório oficial, publica em 1933 Viagem à Armênia, um texto livre, literário, logo atacado pela crítica alinhada ao Partido. Nesse mesmo ano escreve o ensaio “Conversa sobre Dante” e, numa reunião de amigos, lê um epigrama satirizando Stálin, motivo pelo qual foi preso e depois banido de Petersburgo. Sua produção dos anos 1930, hoje considerada um dos pontos altos da poesia do século XX, só foi publicada postumamente, sob os títulos Cadernos de Moscou(1930-34) e Cadernos de Vorônej (1935-37), cidade onde o autor se exilou com a mulher. Em maio de 1938 Mandelstam foi preso novamente e sentenciado a cinco anos de trabalhos forçados. Morreu em dezembro do mesmo ano, numa estação de trânsito nos arredores de Vladivostok, a caminho de um gulag na Sibéri a Oriental.

Sobre o tradutor
Paulo Bezerra estudou língua e literatura russa na Universidade Lomonóssov, em Moscou, e foi professor de teoria da literatura na UERJ e de língua e literatura russa na USP. Livre-docente em Letras, leciona atualmente na Universidade Federal Fluminense. Já verteu diretamente do russo mais de quarenta obras nos campos da filosofia, psicologia, teoria literária e ficção, destacando-se suas premiadas traduções de Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Em 2012 recebeu do governo da Rússia a Medalha Púchkin, por sua contribuição na divulgação da cultura russa no exterior.

Texto de orelha
“Não quero falar de mim mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo. Minha memória é hostil a tudo o que é pessoal. Se dependesse de mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao recordar o passado. [...] Repito: minha memória não é amorosa mas hostil, e não trabalha a reprodução mas o descarte do passado.”

Esta afirmação, reiterada como se duvidasse de si mesma, aparecendo perto do final de uma das mais densas e elípticas prosas memorialísticas já escritas, abre um capítulo dedicado tanto a um teatro anti-histriônico e, portanto, de exceção na Rússia do começo do século XX, quanto, mais especificamente, à sua principal atriz, Vera Komissarjévskaia, que, contrapondo-se aos padrões da época, havia desenvolvido um modo minimalista, quase silencioso, de atuar.

Nada mais difícil, assim, do que avaliar, sobretudo num texto que se esmera em ser menos taxativo do que sugestivo e menos narrativo do que descontínuo, a sinceridade com que o autor, um dos dois ou três maiores poetas russos da modernidade, namora a própria despersonalização. Afinal, se O rumor do tempo não se assemelha em quase nada a uma autobiografia corriqueira, tampouco é um documento impessoal. Pelo contrário. O que, no entanto, corrobora a sinceridade de sua afirmação é que não parece haver um parágrafo, uma frase sequer, onde não se patenteie que Mandelstam recorda, sim, mas a contragosto.

Só que suas lembranças são preponderantemente sonoras, pois, enquanto o que recorda de visual acaba se traduzindo em imagens grotescas e surreais, suas recordações auditivas, seja o sotaque do pai ou a língua estranha dos avós, seja a apresentação de um pianista e um violinista ou a eloquência de um político, como se tivessem ecoado ininterrupta e insistentemente anos a fio em sua caixa craniana, registram-se com urgência e precisão. Quando ele pretende enfatizar algo, dá-lhe uma inesperada dimensão musical, dizendo, por exemplo, que o pensamento político de Herzen soa como uma sonata de Beethoven.

Tamanha hipertrofia auditiva está, além disso, inteiramente de acordo com a constatação de que, dentre os grandes poetas modernos, o russo talvez tenha sido o mais oral de todos. Segundo seus biógrafos, ele gestava longamente seus poemas antes de fixá-los, já prontos, por escrito. Os poemas de Mandelstam, autor perseguido e assassinado pelo regime soviético nos anos 1930, continuaram proscritos por pelo menos mais duas décadas, e só sobreviveram graças à sua viúva, Nadiéjda, que os memorizou.

Mais do que escutar, o poeta auscultou atentamente seu tempo e tratou de transcrever todos os sons, todo o murmúrio, burburinho, algazarra etc. (que havia previamente gravado no seu “disco de prata” cerebral) da Rússia anterior à Revolução de 1917. E, na algaravia de sua formação política, no bulício do aprendizado poético, na dissonância da conscientização concomitante de ser judeu e de estar longe do judaísmo, o russo seguramente entreouviu os maus presságios que ressoam surdamente em seu texto. Quando escreveu O rumor do tempo, ele também estava sendo auscultado, não pelos proverbiais ouvidos das paredes, mas pelos onipresentes do poder.

Poucos anos depois, seu epigrama contra Stálin, lido uma só vez para quatro ou cinco amigos, um poema que fala da Rússia como um país no qual só se pode sussurrar, não deixou de ser imediatamente ouvido no Kremlin. Preso, libertado e novamente preso, Óssip Mandelstam morreu doente, faminto e enlouquecido a caminho de um campo de trabalhos forçados na Sibéria durante o inverno de 1938.

Nelson Ascher

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