País desgovernado

Dois parlamentos dividem um só prédio na Venezuela

A Assembleia presidida por Guaidó e a outra, chavista, coexistem num edifício em que deputados tentam dar a impressão de uma normalidade que não existe

Atualizada em 11/10/2022 às 12h26
O líder da oposição e autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó
O líder da oposição e autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó (AFP)

CARACAS - Na Venezuela existem dois universos paralelos separados por 45 degraus. O acesso à Câmara parlamentar, o epicentro da Assembleia Nacional (que foi declarada sem valor pelo Chavismo em 2017), é muito concorrido. Um vai e vem de deputados, jornalistas, convidados que sobem e descem para seus gabinetes sem grandes complicações. D

a entrada, pode-se ver o salão da frente, onde a sessão da Assembleia Nacional Constituinte (esta, sim, aprovada pelo chavismo para anular a AN) será realizada em poucas horas. O acesso ali é uma quimera. Ao se aproximar da entrada, um homem com um detector de metais e uma mulher, também com um detector, esperam na porta. Ao lado dela, dois guardas nacionais impedem a passagem.

Tudo na Venezuela parece passar por um comandante, mas desta vez não expressamente "o comandante", o onipresente Hugo Chávez, cuja imagem ou nome se pode notar, goste-se ou não, constantemente ao longo do dia.

A porta para acessar o prédio de ambas as assembleias é a mesma. Até que se atravesse uma delas, pode-se optar por ir para um lado ou para o outro, mas nada indica que existe uma divisão. No pátio, às duas da tarde, todos convivem, sem muito ruído, num espaço pequeno. "Em algum momento teremos que trabalhar no mesmo lugar", admite um deputado da oposição. Os chavistas se recusam e preferem não falar, respondem quando são interrogados e reclamam da imprensa internacional, dizendo, é claro, que os jornalistas distorcem tudo o que dizem.

Sem governo

A Venezuela é um país sem governo — e com dois presidentes. Desde 23 de janeiro, a Assembleia Nacional, o Parlamento eleito em 2015 após a vitória esmagadora da oposição nas últimas eleições legislativas, tenta reafirmar o poder alcançado nas urnas em torno da figura de Juan Guaidó. Sobre o líder do partido Vontade Popular, que prestou juramento há duas semanas como presidente interino, gira toda a estratégia dos opositores de Nicolás Maduro. Sua presença atrai a atenção e não são poucos os que querem ver nele uma espécie de Obama caribenho, seja no físico, nos gestos ou no carisma. Guaidó conseguiu algo que a oposição perdeu e que Chávez não criou por muito tempo: esperança.

É terça-feira, 5 de fevereiro. Guaidó acabou de se encontrar com um grupo de ex-ministros de Chávez em seu gabinete no Parlamento e sua chegada à AN é acompanhada por um grupo de jornalistas. A expectativa é ótima também por dentro. Antes de se sentar para presidir a sessão, ele fala no gabinete. Deputados estão constantemente se aproximando dele para cumprimentá-lo. Pedem para fazer selfies. Uma vez sentado, o presidente da AN olha para os presentes, sorri e acena quando reconhece um rosto que lhe é familiar.

A sessão, marcada para às 10h, começa com mais de duas horas de atraso. O primeiro a tomar a palavra é o veterano da oposição Henry Ramos, líder da Ação Democrática, que adverte que em poucas horas a chavista Assembleia Constituinte, na sala de estar em frente, vai dissolver a Assembleia Nacional. É o rumor do dia. Isso significaria aguçar ainda mais o conflito. Na Venezuela há sempre mais um passo para a degradação da crise. Ramos Allup pede aos deputados que sejam vigilantes, como se pudessem fazer algo para impedir o que ocorre.

Os deputados passam a impressão de normalidade, o que não é real. A agenda é cumprida sem grandes problemas: uma lei que estabelece as bases para uma hipotética transição democrática, a estratégia para receber ajuda humanitária que chega à fronteira e a rejeição de qualquer diálogo ou grupo de contato — em referência à União Europeia — que "alongaria o sofrimento do povo".

"Aprovado!" repete Guaidó a cada ponto votado enquanto toca uma campainha e levanta a mão. Por um tempo, a sessão coincide com a dos rivais na sala da frente. Presidida por Diosdado Cabello, ela tem paredes adornadas por retratos de Chávez e Bolívar. Lá, o chavista Frang Morales, desfilando com uma boina vermelha e uma pulseira com a bandeira venezuelana, promete — e consegue — "resumir 27 anos de história em cinco minutos" (referindo-se aos 27 anos desde a tentativa de golpe contra Chávez). Aqui, mais do que programas governamentais, o tema são as memórias: "Quando você sobe a este púlpito, sente emoção. Quando vejo os rostos de todas essas mulheres e homens, vejo o sorriso do meu comandante Chávez, que tanto amava seu povo", diz Morales.

Consulta popular

As horas passam até que Diosdado Cabello começa a falar de eleições. Primeiro, ele anuncia que uma comissão será criada para conduzir uma consulta popular e, assim, satisfazer a oposição, diz ele, embora os opositores na sala em frente reivindiquem a Presidência com garantias democráticas. Cabello não esconde o desprezo pela oposição e por seu líder.

"O auto...", diz sobre Guaidó, sem completar a palavra "autoproclamado" (presidente interino). "Como se perde tempo nesta vida", comenta sarcasticamente. Lembra aos membros da Assembleia Constituinte que o presidente da AN lhe disse que estaria disposto a fazer qualquer coisa. E Cabello, novamente, o desafia: "Olhe, senhor Guaidó, você não ouviu o estalar de uma bala por perto. Você não sabe como é quando uma bala passa a três centímetros de onde você está. Você não tem a menor ideia. Nós soldados somos treinados para isso".

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