Folia pelo tempo

Do “entrudo” aos blocos e cordões: histórias do Carnaval de São Luís

Festa começou de forma segregadora na capital; com adequações sociais do fim do Império, adotou-se uma linha de aceitação de igualdade entre classes; neste contexto, a folia, confinada a ambientes fechados, volta para a rua

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h27
Populares participam da festa de Carnaval no Largo do Carmo em 1903
Populares participam da festa de Carnaval no Largo do Carmo em 1903

SÃO LUÍS - A festa mais popular do país começou a sua história na capital maranhense de forma segregadora. Foi assim o início do carnaval na cidade que, com seus costumes e características, fizeram parte de um momento histórico importante e de transição dos séculos XIX para o XX. Uma tradição que começou a partir do fim de um dos períodos mais cruéis do país tornou-se um encontro em que o “proibido”, muitas vezes, transforma-se em algo permissivo.

De festa popular à migração para as elites. Dos limões-de-cheiro aos confetes, serpentinas até os tempos modernos. A origem do Carnaval no país inicialmente se dá com o chamado “entrudo”, ou seja, com uma brincadeira que consistia pela saída de um grande grupo pelas principais ruas das cidades, onde participavam desde escravos, passando por libertos e pessoas do povo.

Conforme cita Ananias Martins, em “Carnavais de São Luís” - obra lançada em 2013 – a chamada onda do “entrudo” foi questionada pelas elites da época. As categorias mais privilegiadas incomodavam-se com o fato de que os representantes das classes menos favorecidas literalmente “tomavam conta” das ruas em prol unicamente da diversão e folia. “Isso trouxe muito incômodo para as classes dominantes, que passaram a questionar o fato”, disse o professor.

Ananias trouxe o fato como uma tentativa das elites de, em meados do século XIX, literalmente “higienizar” as ruas e avenidas. As proibições de “ajuntamento” das massas populares tornaram-se mais frequentes, ao mesmo tempo em que, no período, começaram a surgir manifestações como os bailes de polka, valsa, marzuca e quadrilhas francesas. Todas estas, de acordo com pesquisadores, foram trazidas sob a inspiração de ideais europeus.

Com adequações sociais do fim do Império e, principalmente, a partir do declínio da atividade escravocrata, adotou-se uma linha de aceitação de igualdade entre classes. Foi neste contexto que – com o surgimento de uma classe operária e diversificada sexualmente com a participação de mulheres – as festas típicas de Carnaval, que até então estavam confinadas apenas aos clubes ou ambientes internos, voltam para os espaços públicos. Essa mudança é também vista na capital, São Luís.

Integrantes do Baralho do Garapé, um dos mais importantes de São Luís, segundo historiadores
Integrantes do Baralho do Garapé, um dos mais importantes de São Luís, segundo historiadores

Início do século XIX – a falta de divertimentos na cidade

Antes da transformação social advinda do fim do período escravocrata, a sociedade ludovicense era carente de atrações para a população. O fato foi comprovado por pessoas que viviam na cidade à época e por estrangeiros, como Henry Koster, filho de um comerciante inglês. Além de constatar o fato, o inglês também observou que, por causa da ausência de atrações na cidade, o gosto pela leitura – um dos hobbies da população européia – era trocado pelo gosto pelo jogo. Segundo Koster, citado por Ananias Martins, “o amor pelo jogo pode ser facilmente explicado no pequeno ou nenhum gosto pela leitura, e as grandes somas de dinheiro reunidas e os raros meios de despendê-las”.

O escritor João Afonso de Nascimento, também cita manifestações. Para ele, “inova-se nos bailes a tradição de dançar a valsa, a polka,a redova ou a varsoviana”. Tratam-se de danças trazidas em especial do leste europeu e que são incorporadas aos costumes da capital dos azulejos.

Outro que faz referência às manifestações nos grandes clubes é Astolfo Marques. Para o escritor, os “grandes clubes, as prestigiosas associações carnavalescas eram quase sempre de efêmera duração […] Assim, o Clube Francisquinha, em 1883, num luzimento fantástico pompeante e filantrópico, na sua meritória campanha em prol da redenção dos cativos”, citou Marques.

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O começo pra valer da festa e a apropriação do Carnaval pelas elites

Em 12 de fevereiro de 1899, um registro de “O Abelhudo”, espécie de folha satírica dos costumes da política “sanluisense”, trouxe trecho em sua edição acerca do entrudo – uma das principais formas de diversão após um período de marasmo na cidade. D acordo com o exemplar, “ hoje é [...] o grande dia destinado á folia, á ratice, á patuscada; - é o inolvidável dia do celebre e burlesco – você me conhece ? – o impagável dia em que devemos esquecer tudo quando ha de grave, triste e sério n’este mundo de miserias, e nos lembrar somente das brejeirices, das momices, dos cantos alegres, das danças patuscas, de tudo em summa quanto possa divertir a humanidade”.

O trecho retrata fielmente a forma de se brincar o Carnaval na cidade, ou seja, o chamado entrudo era sinônimo da festa, assim como em outras províncias do país. Antes do entrudo, havia o costume dos chamados “limões-de-cheiro” (simulacro de laranja envolvido por cera e certo volume de água) que, apesar de não envolver personagens fantasiados, também inspira o Carnaval na cidade pela espontaneidade, necessidade de interação e fuga de certos costumes da sociedade mais elitizada.

De acordo com Joelza Ester Domingues, em “Ensinar História”, a partir da primeira metade do século XIX, jovens lançavam os “limões” especiais entre si e feitos basicamente e de forma artesanal com cera. Segundo relatos, a brincadeira dos limões foi praticada até mesmo pelo “imperador D. Pedro II”.

Em alguns locais, como Rio de Janeiro e até mesmo em outras cidades menos importantes financeiramente do país, a brincadeira – que também de certa forma inspirou o Carnaval – passou a sofrer duras críticas por parte de alguns setores da população. Antes espontânea e do povo, a festa começou a ser vista como uma manifestação “perigosa”. Segundo Ananias Martins, nestes locais, era basicamente uma tentativa das elites de afastar estes costumes que não refletiam “certo grau de civilidade” das sociedades europeias. “Em São Luís, viu-se pouco deste costume, mas o pouco que se teve foi condenado e repudiado pelas elites”, disse Ananias Martins.

Mesmo sem o intuito de estabelecer uma “guerra”, e sim, uma amizade entre as pessoas, a brincadeira dos limões foi caindo em desuso. A partir daí, a festa passa a ganhar outros elementos e, segundo Euges Lima, já “se fazia presente na São Luís do final do século XIX a existência de um outro modelo de Carnaval, com um perfil mais elitista, mais aos moldes dos carnavais veneziano e parisiense”.

Ou seja, a festa – do chamado “você me conhece” - relatado por “O Abelhudo”, ou seja, quando o folião mascarado indagava os passantes nas ruas sobre a sua identidade seguido de insultos, jatos de água e limões na cara, dava lugar para uma festa, digamos, mais comportada e voltada para os clubes e outros ambientes em geral. Um registro desta festa mais pacata é possível de ser vista na Revista do Norte, com registro de aglomerado de participantes da festa no Largo do Carmo, Centro, no início do século XX.

Em “Ensinar História”, Joelma Domingues observou que, a partir daí, houve uma espécie de “apropriação do Carnaval pelas elites” e o surgimento de uma festa que Domingues chamou de “Carnaval civilizado”, que estava longe das ruas. Segundo ela, a transformação da festa vista em São Luís também acompanhava as mudanças percebidas em outras partes do país.

A época mais complexa do Carnaval – o carnaval dos cordões

Do início do século XIX – com suas transformações e características – até em meados da década de 1970, São Luís viveu a época mais áurea de sua história. Pelo menos em termos de manifestações, muitos historiadores e pesquisadores definem como o período mais rico da festa na cidade. Alguns pesquisadores, como Ananias Martins e outros citam o intervalo como o em que São Luís teve o terceiro melhor “Carnaval” do país.

Essas brincadeiras convergiam para os cordões e corsos que, até hoje, são vistos em determinados cantos da cidade. O apogeu dos cordões, por exemplo, que se caracterizavam pela união de foliões de toda a parte do território foram descritos por Carlos de Lima, em “Antigos Carnavais”.

De acordo com Lima, os cordões vinham “pela Vila Passos, do Canto da Fabril, do Alto da Carneira e da Madre Deus”. Segundo o escritor, moças e rapazes vinham fantasiados com calças lisas e blusas coloridas e entravam nas casas cantando e dançando” de toda a maneira.

Uma das figuras mais conhecidas do período era o chamado “urso”. Ou seja, era um brincante vestido com uma fantasia característica da época e feita de estopa para lembrar o pelo do animal e uma máscara. De acordo com relatos de jornais, o “urso fazia danças na porta das residências” enquanto um companheiro do tal urso fazia às vezes de recolhedor das moedas que eram ofertadas aos brincantes. A dupla, neste caso, em geral era acompanhada por uma charanga, composta por recoreco, cavaquinho e pandeiro”.

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