Artigo

A arte que redime a vida cotidiana

Atualizada em 11/10/2022 às 12h27

Um quadro de Vincent van Gogh chega facilmente à casa dos milhões de dólares. Sua pintura revolucionária para a época - final do século XIX - nem sempre foi vista dessa forma e, mesmo no período em que produziu suas obras primas, nunca conseguiu vender um único quadro, o que fez com que dependesse, para seu sustento, do irmão mais novo, Theo.

É conhecido de todos que van Gogh sofria de uma doença mental. Sua mudança para viver no sul da França, onde encontrou todas as cores e noites estreladas retratados em seus quadros. Mas não esqueçamos, seus incríveis girassóis, que compôs como tentativa de tratamento, são reminiscências dos campos da Holanda.

A solidão e a doença legaram ao incrível pintor um sofrimento indizível o que o levou a um ato que ele mesmo retratou em uma pintura: a amputação de parte da orelha. Era 1888, na cidade de Arles, onde vivia. Naquela mesma noite ele foi até um bordel que costumava frequentar e entregou o pedaço da orelha envolta em um lenço a uma moça.

Alguns estudiosos lançaram dúvida sobre este fatídico episódio na vida do pintor. Seria mesmo verdade que ele teria se automutilado? Uma pesquisa recente tirou a história a limpo. Dr. Felix Rey, que cuidou da orelha de van Gogh e de quem ficou amigo, decifrou e atestou o terrível acontecimento, inclusive com um desenho inequívoco do corte que decepou quase todo o pavilhão auricular, restando apenas uma pequena porção do lóbulo.

Relato esta história porque a arte foi a primeira forma de retratar o homem: em pedra, mármore, metal, barro. Dela adveio o que nós, como humanidade, de mais belo produzimos, mesmo em pessoas com almas agonizantes como van Gogh. Para ele e tantos outros, a arte foi a única forma de se manter vivo e em comunicação com o mundo. Depois os desenhos e pinturas se tornaram a principal forma de retratação da imagem do mundo e das pessoas.

A arte é pedagógica, é libertadora. Por isso mesmo, eu a recomendo a todos que compartilham o sagrado ofício da Medicina, nós que vivemos diante da concretude da vida em sua máxima expressão. Charles Bell, cirurgião que trabalhou nos campos de batalha da guerra entre Inglaterra e França, em pleno século XVIII, era exímio desenhista. Apenas 45 desenhos e pinturas sobreviveram de sua vasta obra, mas suficientes para unir num só homem a delicadeza do pincel que expressa a realidade e sua duríssima ação como cirurgião de corpos dilacerados pela guerra.

A arte é o amálgama que une a realidade e nossas projeções, interpretações e significações sobre ela. Podemos ter um vislumbre disso na forma como Gunter von Hagens “plastifica” corpos nas posições mais improváveis ou revela suas entranhas. Há algo de assombroso nesta arte. Ou ainda a incrível exposição que corre o mundo do dr. Roy Glover que, em apenas em uma de suas visitas ao Brasil, foi vista por cerca de 670 mil pessoa. Os desenhos anatômicos de Da Vinci são verdadeiras obras primas e quase tão detalhadas quanto uma imagem fria produzida por tomógrafo.

Ao nos depararmos com estas formas de manifestação da criatividade humana e da “máquina” pura, perfeita e incrivelmente harmônica, que é o corpo humano, somos tomados de um quase êxtase, temor, maravilhamento. Imagine uma mão que dedilha as cordas de um violão. Tentar perceber a fascinante rapidez como os dedos deslizam pelas cordas e nelas produzem o som que agrada, que embevece e alivia a alma. São escapes para a vida que vivemos em ambientes frios e iluminados por luzes artificiais. A maior riqueza do homem é a sua incompletude. A célebre frase de Manoel de Barros é de absoluta verdade. A arte redime, encanta e produz perspectivas únicas da vida.

Natalino Salgado Filho

Médico, doutor em Nefrologia, ex-reitor da UFMA, membro da ANM, da AML, da AMM, Sobrames e do IHGMA

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