Triste estatística

2019 começou com mais de 20 casos de feminicídios

Com maior respaldo da Justiça e penalidades ainda mais severas, os casos de violência contra a mulher são notificados e enquadrados como feminicídio; as denúncias aumentaram em 30%, mas a quantidade de ocorrências é considerada desesperadora

Atualizada em 11/10/2022 às 12h27
Feminicídio é considerado crime hediondo e é inafiançável, de acordo com a Justiça brasileira
Feminicídio é considerado crime hediondo e é inafiançável, de acordo com a Justiça brasileira (Divulgação)

BRASÍLIA - O Brasil tem acompanhado diversos casos de atentado a integridade e a vida da mulher; sempre causados por maridos/namorados ou ex-companheiros que não aceitam a separação. Em 2018, o Ligue 180 registrou 92.323 denúncias (em 2017 foram 73.699). Mas isso não quer dizer que os crimes diminuíram. Entre julho e dezembro de 2017 foram 24 assassinatos; o mesmo período em 2018 registrou 39. As tentativas de feminicídio saltaram de 2.749 para 4.180 (alta de 46%). Pelo menos 21 casos de feminicídio ocorreram na primeira semana de 2019. ​Atualmente, um milhão de processos de violência doméstica tramitam na Justiça brasileira.

A Polícia Civil investiga pelo menos sete casos de feminicídio em Minas Gerais desde o início de 2019. Na quinta-feira (10), Gilvane Paula Agostinho, de 38 anos, que estava grávida de oito meses, foi assassinada a facadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O bebê também não sobreviveu.

A vítima foi atacada dentro de uma casa, em Esmeraldas, e o suspeito é o ex-marido dela. Darismar Vieira, de 38, segundo vizinhos, não aceitava o fim do relacionamento e usou uma faca para agredir Gilvane que, mesmo ferida, conseguiu correr, atravessar a rua e pedir ajuda na casa da vizinha que mora em frente.

Gilvane foi levada para o Hospital Municipal de Contagem e, pouco depois, o suspeito que, na fuga, bateu o carro, foi atendido no mesmo hospital."Pra gente todo mundo é paciente e a gente vai fazer o melhor possível pra salvar qualquer paciente que entrar aqui dentro do hospital", disse o diretor geral do complexo hospitalar, João Pedro Laurito Machado.

Hediondo

O crime de assassinato "por discriminação à condição de mulher" é considerado hediondo e está previsto em lei de 2015. Para a advogada Christiane Faturi Angelo Afonso, isso é reflexo de uma sociedade machista, na qual o homem acredita ter controle total sobre a mulher, e ainda, a enxerga como objeto de controle. “Ao sentir que perde as rédeas da relação, o sentimento de raiva e ódio acomete aquele que pratica o crime. Não existe o respeito e, tampouco, o afeto. É posse mesmo”, explicou. “Segundo o Ministério Público, no Brasil são registrados oito casos de feminicídio por dia. E ter um canal de denúncias é fundamental para que haja uma redução ou, quem sabe, extinga crimes deste tipo”, acrescentou.

Além do Ligue 180 – que funciona 24 horas por dia e recebe denúncias anônimas –, quem quer fazer denúncias também pode optar por qualquer delegacia. Com o B.O – Boletim de Ocorrência – em mãos, é possível entrar com uma medida protetiva sob a Lei Maria da Penha e, com isso, evitar um fim trágico.

“Infelizmente, em muitos casos, a mulher é dependente do marido (seja financeiramente ou afetivamente) e, portanto, tem medo dos prejuízos ainda maiores que uma separação pode causar. Quando o caso é com casais já separados, isso pode envolver o excesso de agressividade do marido, que pode ameaçar não somente a vida dela, como das pessoas que ela ama. Então, por diversas vezes, a mulher não denuncia para um instituto de proteção e medo (mesmo que ela seja ou tenha sido violentada)”, explicou.

Ainda segundo a advogada, preservar vidas é responsabilidade de todos. É preciso alertar a população para que não seja omissa e peça ajuda quando vivenciar algum atentado de feminicídio. Denunciar pode salvar vidas. “É preciso ser humano e solidário, e não um mero expectador de uma situação de feminicídio. Só a denúncia poderá mudar essa triste realidade”, declarou Christiane Afonso.

Um levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo revela que 66% dos assassinatos de mulheres acontecem dentro do ambiente familiar.

Legislação

No Brasil, o feminicídio está previsto na Lei nº 13.104 de 2015 e é considerado o assassinato que envolve “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, explica a juíza capixaba Hermínia Maria Silveira Azoury.

"Quando a gente fala em feminicídio, a gente fala em vítimas do gênero feminino. A vítima é uma mulher. E ela veio como uma qualificadora do artigo 121. Quer dizer, veio dar um upgrade, veio aumentar a pena", pontua.

A pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos. Com a nova lei, o crime foi adicionado ao rol dos crimes hediondos, como o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros. A legislação é fruto da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher, instalada em 2013.

Segundo o Atlas da Violência 2018, são registradas 13 mortes violentas de mulheres por dia. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país. O número representa um aumento de 6,4% no período de dez anos.

Já em 2017, dois anos após a Lei do Feminicídio entrar em vigor, os tribunais de justiça de todo o país movimentaram 13.825 casos. Destes, foram contabilizadas 4.829 sentenças proferidas. Os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A advogada e socióloga Fernanda Emy Matsuda, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), enxerga um interesse maior da imprensa em cobrir os casos de feminicídio. Ela reitera, no entanto, a necessidade em descaracterizar esses crimes como “atos passionais”. Segundo ela, ao fazer isso, a mídia desvia a atenção de um problema que é estrutural.

"Quando a gente fala em crime passional, parece que a gente está falando de uma situação em que houve uma explosão, um descontrole emocional, uma descarga de raiva e violência que culminou na morte, na fatalidade. Mas não é isso o que acontece. Esses casos que têm sido divulgado na imprensa mostram que as mulheres vinham há muito tempo, ao longo do relacionamento e da sua vida, sendo vítimas dessa violência."

Educação e gênero

A tipificação do crime foi um passo comemorado por militantes e especialistas na área por dar visibilidade e mostrar, com mais precisão, o cenário da desigualdade de gênero no país.

Mas a juíza Hermínia Azoury — que instalou a primeira vara de violência doméstica do estado do Espírito Santo, a segundo do país — pontua a necessidade de implementar, em paralelo, ações de prevenção e formação.

"Essa mudança de paradigma é complicada, mas é possível. Eu sempre bato na mesma tecla, em 25 anos de magistratura e 16 anos de Defensoria Pública: tem que começar pela Educação. E mudança de cultura é uma coisa que tem que ser trabalhada de forma gradual e passando pela Educação", defende.

Na contramão do que a especialista recomenda, no entanto, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) afirmou que alunos do ensino médio não precisam “saber sobre feminismo, linguagens outras que não a língua portuguesa ou história”.

Assim como seu pai, o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, o deputado é apoiador do projeto Escola Sem Partido e é contrário a discussões de gênero nas escolas públicas.

Novo governo

Fernanda Matsuda, por sua vez, se preocupa com o novo posicionamento do governo federal e de aliados. Ela teme que a mudança de concepção pode acabar, de vez, com a vontade política de construir políticas dirigidas às mulheres.

Segundo a socióloga, essa “vontade política” culminou, entre outras coisas, na criação do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos — um dos primeiros a serem extintos no governo de Michel Temer (MDB). Com Bolsonaro, as propostas para a áreas vão se centralizar no Ministério da Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos.

"A mulher deixa de ser sujeito de direito dentro desse novo modelo institucional. A mulher é um componente da família. E muitas vezes, em detrimento dos seus direitos, a política para as mulheres acaba privilegiando o interesse da família", afirma ela.

"É como se mulher tivesse que sacrificar sua integridade física, mental e seu direito a uma vida livre de violência em prol desse modelo familiar que se coloca e que é imposto por uma sociedade extremamente machista", completa.

Em 2017, o Brasil concentrou 40% dos feminicídios da América Latina segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU).

Mais

Criada em março de 2015, a Lei do Feminicídio - nº 13.104, tipifica os crimes de ódio contra a mulher; desta forma, o crime de homicídio simples (que prevê de seis a 20 anos de prisão) passa a ser considerado homicídio qualificado e entra para o rol dos crimes hediondos, com pena de 12 a 30 anos e é inafiançável.

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