Coluna do Sarney

O Natal do Rei-dos-Homens

José Sarney

Atualizada em 11/10/2022 às 12h27

No Maranhão, a paisagem de minha mocidade era rica de tipos populares. Ainda se podia desfrutar dos prazeres da província, em que todos se conheciam. Tínhamos o Bota-Pra-Moer, o Paletó e o Rei-dos-Homens.

Este era um homem alto, magro, pálido, de uns olhos vermelhos, que diziam da inquietação e das alucinações que lhe iam na alma. Ele mesmo se chamava Rei-dos-Homens e usava várias roupas, uma em cima da outra, várias camisas e calças, mantos e capas, curtidos pela poeira e puídas pelo tempo. Dizia-se enviado de Deus, fazia previsões de que o mundo ia acabar, marcava data, anunciava dilúvios e citava os Evangelhos e livros de profecia.

Ficava no adro da Sé, a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, cuja imagem fica do lado de fora, entre as torres de sinos, para mostrar a todos que foi ela quem expulsou os franceses e é quem protege a cidade.

Certa vez fiquei com Joaquim Itapary, amigo querido, a ouvir o Rei-dos-Homens, cujo nome era muito singular - Iwalter -, e ele, com um rolo de papéis na mão, dava golpes no ar, dizendo que as Bestas do Apocalipse estavam soltas nos campos de Arari e ali soltavam demônios na noite que eram responsáveis pelos pecados que ocorriam na Zona do Meretrício, onde ainda existia o ritual dos bailes de abertura com cafetinas célebres.

Rei-dos-Homens se dizia enviado de Deus e era em seu nome que vivia e pregava. O coitado era alvo de chacota geral, com aquela quantidade de roupas e cumprindo sua missão de pregar na porta das igrejas.

Ele misturava as coisas. Dizia que São José era coronel da polícia, São João fora visto tomando banho de mar na Praia dos Lençóis e Santa Teresinha era uma vizinha, filha do ferreiro Jonas, que era negro. Contestado, respondia que era mulata e Maria Madalena, também. Falava de suas visões, sereias nuas passeando no céu e o fogo eterno, o inferno, que ele dizia que era um caldeirão onde os mortos eram cozidos com os pecados.

Pobre Rei-dos-Homens. Vivia o seu mundo e não era entendido. Um ano, perto do Natal, armou-se o presépio na Igreja da Sé. Um presépio antigo, com bichos e Reis Magos, obra de terracota portuguesa, com o Menino Jesus de olhos de louça, bem maior que o cenário, não na manjedoura, mas numa cesta de palhas secas de babaçu.

Disseram a Rei-dos-Homens: “Rei-dos-Homens, você não é o sol?” Ele perguntou: “É a lua?” “Não,” responderam-lhe, “é um menino.” “Onde está?” “Aqui na Igreja da Sé.”

Levaram-no em comissão ao altar. “Onde está?” Mostraram o presépio. “É esse menino?” “É.” Rei-dos-Homens ajoelhou-se e começou a chorar. “Viu, Rei-dos-Homens?” “Vi e acreditei. Seus olhinhos brilharam e falaram comigo.” E continuou chorando.

Não queria sair da Igreja. Levaram-no e lá mesmo ele começou a tirar suas roupas, jogando fora velhos paletós e camisas. Na porta de saída da igreja ele gritou: “O Rei dos Homens é um menino.” E continuou chorando e foi beber. Colocaram veneno no seu copo.

E Rei-dos-Homens morreu. O Ministério Público abriu inquérito para apurar qual o veneno e quem o envenenou. Nada se descobriu.

A cidade chorou pela sua morte. E quando eu ouço os sinos de Natal, vejo o Rei-dos-Homens proclamando: “Deus é um menino!”

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