Artigo

A inimiga fiel

Atualizada em 11/10/2022 às 12h27

Nascemos para morrer. Desde que o mundo é mundo, não temos notícia de alguém que nunca morreu. É duro aceitar a morte quando a sentimos perto de nós, atingindo amigos e, dor maior, nossa família. As incursões dessa figura em círculos afetivos tornam-se cada vez mais frequentes, como que se acercando. Amigos e parentes aos poucos se vão, após longas doenças ou de súbito, reiterando a fragilidade do fio que nos liga à vida.

Escamoteamos a realidade, acontece com os outros. Assim pensava eu, até descobrir que agasalhava o inimigo, o monstro que se nutre de nós mesmos e, aos poucos, apodera-se de nosso corpo, até a destruição final -, um câncer de alta agressividade. Rebati com igual agressividade. Creio que o afastei. Até quando?.

A morte, o enigma terminal, fascina a todos, porque escapa à nossa compreensão. A literatura está repleta de obras em que a magra é a principal personagem. José Saramago a tem como o grande mote dos seus romances: em As intermitências da morte, ele nos mostra o horror da vida na ausência da morte; em O ano da morte Ricardo Reis, os vivos contracenam com os mortos e estes são sempre os mais sábios; em Levantado do chão, a morte assinala os bons - os maus nunca morrem; em Memorial do convento, a heroína, Blimunda, capaz de ver o interior das pessoas, recolhe o espírito dos mortos, que irão alçar a Passarola aos céus. Nas obras de Saramago, a morte é personagem do “bem”.

Do bem para uns, elemento de terror para outros, de sedução, sempre. O deslumbre aumenta, quando a tragédia se abate sobre agrupamentos humanos, em meio a situações de glamour ou de suposta segurança, em que a surpresa é a substância principal. São as tragédias para sempre lembradas: Pompéia, invadida por gases venenosos, cinzas e lava que levaram à morte moradores, surpreendidos em meio a atividades rotineiras; o naufrágio do Titanic, campeoníssimo do gênero - luxo, beleza, arrogância -, acontece após o jantar em que ricaços se divertiam no navio mais seguro do mundo. É fácil avaliar o fascínio dessa catástrofe: faz mais de cem anos que o ex-maior transatlântico do mundo naufragou e a tragédia ainda rende livros e filmes.

Outra catástrofe, o voo 1907 da GOL, sinistro de grandes proporções a povoar nosso imaginário. Esse voo, reuniu todos os ingredientes das grandes tragédias: um avião de novíssima geração, seguro, em uma das primeiras viagens, repleto de pessoas de classe média e alta, sobrevoando a impenetrável selva amazônica, cai e fragmenta-se em mil pedaços. O acidente, provocado por uma tola falha humana, ilustra a fragilidade dos sistemas de segurança em que acreditamos e reforça o que os gregos antigos sempre souberam: quando chega a Hora, de nada adianta nossa hybris.

A mídia especula os últimos momentos dos que participaram do vôo fatídico. A sorte do que deixou de viajar; o rapaz que viajou para pedir a namorada em casamento; a moça que vinha de férias fazer surpresa à mãe. Na caixa preta, os pilotos conversam antes da hora fatal. A vida acontecendo, enquanto a morte espreita e prepara a sua cilada.

A mata, sepultura implacável, recobre os destroços da aeronave e o que resta das pessoas e seus pertences, assim como o fizeram as cinzas e a lava em Pompéia e o mar profundo do Pacifico. A vida apaga os sinais da morte. Aviões levantam voo e navios singram os mares todos os dias, pessoas constroem novas cidades ao pé das encostas de vulcões. Voltamos ao eterno e sempre novo jogo com o imponderável.

Ceres Costa Fernandes

Mestra em Literatura e membro da Academia Maranhense de Letras

E-mail: ceresfernandes@superig.com.br

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